"Tome, Dr., esta tesoura, e… corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!"
Budismo Moderno, Augusto dos Anjos
Fiquei estarrecido ao ver um presidente de um Conselho Regional de Medicina dizer que "nós médicos é que sabemos o que é bom pro paciente", como argumento forte contra a regulação (que tem como uma de suas formas a proibição) de remédios contra obesidade pela ANVISA.
Sabem mesmo? Só aos médicos corresponde saber o que é melhor para o paciente? É o paciente um mulambo, um vaso? Ele tem família? Ele tem uma vida, uma biografia? E onde foi parar o tirocínio dos médicos quando percebemos que o Brasil consome mais de 50% da Sibutramina no mundo?
O argumento e os dados são bem ilustrativos da arrogância da classe, e do cinismo ante a sanha de lucro da indústria médico-farmacêutica, da medicina privada e de inúmeros mau-caráteres, verdadeiros lobos de jaleco. A elitização da profissão, os custos altíssimos e o individualismo neoliberal tem nos legado uma miséria humana impressionante naqueles que deveriam ser de fato guardiões da nossa vida, e passam a ser empreendedores da nossa agonia e morte.
Por isso admiro tanto os profissionais de medicina que põem o pé no barro e fazem medicina como uma militância, como solidariedade, e são pouquíssimos, porque o sistema quer assim. Repito, alvo que serei do esprit de corps, não são todos. Infelizmente, o esquema é pára fazê-los monstros, na exata medida da monstruosidade do capitalismo. E me lembro de outro tipo de médicos, do Chico Passeata, de Teresinha Braga, de pessoas que se importam com as pessoas e fazem da prática médica aquilo que ouvi certa vez na boca de um grande médico cubano. Confrontado com a vocalização de uma das tentações de Cristo, perguntado por um repórter brasileiro sobre porque ganhava pouco em Cuba, como os cubanos, em pleno Período Especial, respondeu que não era mercenário, que seu dever era mitigar o sofrimento humano.
É claro que a ANVISA tem poder e obrigação de normatizar os medicamentos. E mais, o paciente não é um objeto na mão de um médico salvador. O paciente tem família, tem vontades, tem opiniões, tem direitos sobre sua própria vida. E existe um Estado. Ele tem funções regulatórias que se aplicam inclusive ao exercício da Medicina. E fodam-se esses argumentos de livre mercado que só desculpam um monte de práticas sacana. O cara diz defender a liberdade, mas na verdade defende o esquema dele. Como na vergonhosa série de artimanhas para impedir que médicos formados em Cuba possam atender aos mais pobre, aonde o filhinho da classe média a alta não quer ir. Aí não vale o livre mercado, vale o Estado.
Mas é curioso ver a defesa do livre mercado para justificar coisas absurdas que afetam duramente a nossa vida...Tem gente formada em Medicina, mas que na verdade é mercenário a ganhar dinheiro com nossa saúde, com nossa doença e com nossa vida. Ressalvas sejam feitas aos bons profissionais, mas, na verdade, o ovo da serpente é esse negócio de ganhar dinheiro com a saúde das pessoas. E os médicos e profissionais de saúde são também vítimas dessa estrutura, com jornadas de trabalho absurdas, vítimas de uma rotina enlouquecedora, com sobrecargas de trabalho e responsabilidade neurotizantes, sob péssimas condições de trabalho, explorados e prostituídos. O médico como indivíduo pode muito menos que o mercado e seus desígnios inconfessáveis. E a medicina curativa pode muito menos que gostaria a arrogância de certos profissionais. Na verdade, saúde devia ser só pública e universal e com recursos, e o capitalismo adoece e enlouquece.
Por isso, indigno-me e não respeito parlamentares demagogos e de direita que ficam com discurso contra um imposto progressivo, quando na verdade querem barrar é uma saúde de qualidade que ameace a máfia privada, como já fizeram com o fim da CPMF, exatamente quando o dinheiro seria todo para a saúde pública. Quando era pra banca privada podia, porque pra banca privada tudo pode. Choco-me com a cara de pau de quem posa de esquerda e ético assumindo posições perniciosas, picaretas, contra o povo.
Temos de diferenciar aparência e essência. Precisamos de um olhar para a saúde que seja mais humano e menos mafioso, intolerável, que deixa as pessoas morrerem à míngua, que não se compadece do sofrimento humano, que estupra a consciência dos próprios profissionais e busca fazê-los esquecer que também são humanos. O capitalismo é uma merda.
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