Fundação Maurício Grabois - www.grabois.org.br
Artigo para a revista Princípios EDIÇÃO 20, FEV/MAR/ABR, 1991, PÁGINAS 36, 37, 38, 39 - 1991
Virou moda abarcar numa mesma categoria a construção do socialismo e sua destruição pelo revisionismo. Tudo é "socialismo real". Tal falta de referência científica não permite um exame crítico adequado à revolução.
Vão-se avolumando especulações de toda ordem acerca do socialismo e de suas perspectivas. Sob óticas as mais diversas, buscam-se explicações para os acontecimentos sucedidos na União Soviética e no Leste europeu. O debate é salutar, merece ser estimulado. São muitos os problemas exigindo reflexão. E ninguém é dono da verdade. Surgem, no entanto, conclusões pouco sólidas. Negam-se princípios fundamentais da natureza mesma do socialismo. Põe-se em dúvida a ciência social que, no dizer de críticos apressados, não passaria de "uma teoria ideologizada" ou de "ideologismo abstrato". Constroem-se projetos utópicos que, na essência, assemelham-se aos de Fourrier e Saint-Simon na metade do século passado. Pretende-se o socialismo sem revolução, sem luta de classes, sem teoria revolucionária.
Seguramente, torna-se necessário examinar com espírito aberto e construtivo os fenômenos indesejáveis ocorridos no processo da evolução social iniciada nos idos de 1917 e que conduziram a um retrocesso na marcha da História. É indispensável detectar as causas desse recuo, considerando as distintas correlações de forças que se apresentavam. Não é tarefa comum, fácil de empreender.
Somente o primarismo auto-suficiente dá respostas abreviadas e inconsistentes – foi o burocratismo, o estatismo, o Estado gigante fundido com o partido único, o socialismo sem capitalismo... foi o modelo "stalinista".
Duas questões importantes chamam a atenção nos debates em curso. O menosprezo pela teoria e a ausência de análise concreta da vigência do socialismo na URSS. O marxismo-leninismo teria perdido sua vitalidade, já não serviria para nada. E o socialismo fora algo confuso que durara várias décadas e terminara na volta ao capitalismo.
“Referência básica para o exame crítico sério do processo histórico”.
Grande número dos que discutem a crise do socialismo procura desconhecer que na União Soviética prevaleceu por muito tempo um novo sistema econômico-social que, mais tarde, foi substituído por outro regime, de natureza diversa. Quando muito, referem-se à época de Lênin, que morreu em janeiro de 1924. Alguns mencionam o começo dos anos 1930. Generalizam os erros, sem levar em conta que houve situações diferentes nos setenta anos de União Soviética. Para eles, tudo é socialismo real, uma coisa só. Desse modo, ficam incapacitados de compreender as questões de fundo que se relacionam com o progresso da humanidade. Não podem chegar a conclusões acertadas.
Na União Soviética não somente aconteceu a maior revolução da História como se conseguiu construir, em boa parte, a nova sociedade. Mesmo raivosos opositores são obrigados a reconhecer o enorme êxito alcançado sob o domínio socialista. Operou-se a revolução industrial, mudou-se radicalmente o sistema atrasado de propriedade rural, fez-se a revolução na esfera da cultura. A União Soviética converteu-se numa grande e respeitada potência, gozando de imenso prestígio internacional. Não por acaso venceu o poderio militar gigantesco da Alemanha de Hitler. É impossível esconder tais fatos que pertencem à História, e são irrefutáveis. Qualquer historiador, fiel aos dados da realidade, reconhece que na velha Rússia feudal-capitalista estabeleceu-se um regime social novo, distinto do capitalismo, uma sociedade dirigida pelo proletariado organizado em sovietes e pelo Partido Bolchevique, fundado por Lênin. Esse novo regime durou cerca de quarenta anos, prova insofismável de sua viabilidade.
Desapareceu há muito tempo, na metade da década de 1950. Nem todos se deram conta do fato, acontecido subrepticiamente. Com o 20º Congresso do PCUS (fevereiro de 1956) completado com o golpe de Estado Kruschev-Zukov (meados de 1957), o proletariado, enquanto classe avançada da sociedade, sofreu uma derrota de significação histórica. Perdia as principais conquistas da revolução de 1917. A partir daí, inicia-se a era do revisionismo, outra concepção, outra orientação política, econômica e social de extração pequeno-burguesa. Seus defensores – Kruschev, Brejnev, Gorbachev – cada qual em momentos diversos, assinalaram com muita ênfase as diferenças radicais que os separavam do passado da URSS condenado in totum por eles. A época do socialismo chamam-na de "stalinismo".
“O balanço do período de construção difere do da destruição”.
É evidente que há duas situações, de diferentes conteúdos sociais. Uma, que vai de 1917 a meados de 1950; outra, das proximidades de 1960 até os dias de hoje. Na primeira, o conteúdo é proletário-revolucionário, na segunda, reformista-burguês. Isso se expressa nitidamente no caráter da orientação posta em prática. Os resultados obtidos são distintos. Durante a vigência do socialismo, em que pesem as enormes dificuldades causadas pela guerra e pelos erros cometidos, melhoraram razoavelmente as condições de vida do povo – havia pão, casa e escola para todos. A crise econômica desapareceu e, com ela, o desemprego. A URSS era o baluarte de defesa da paz, contra as guerras imperialistas. Outro é o balanço do período revisionista, nele incluídos os 5 anos de Perestroika. Crise profunda, fome, miséria, desemprego; a humilhante ração de comida fornecida pelos exploradores derrotados em 1917 e na Segunda Grande Guerra. E a URSS de braço dado com os norte-americanos no conflito do Oriente Médio.
Estariam satisfeitas todas as aspirações de progresso e bem-estar dos trabalhadores vivendo no regime socialista? Não. Muito ainda era preciso fazer, equívocos e erros deviam ser corrigidos. A obra não terminara. Teria que continuar numa etapa socialista mais avançada. E o que ocorreu com o revisionismo? Entre uma parte da população predominam anseios individuais de pequenos grupos que sonham transformar-se em capitalistas, em integrantes da velha civilização ocidental. As massas trabalhadoras inquietas, sem perspectivas, interrogam o futuro.
Nesse contexto encontra-se a referência fundamental para a pesquisa séria e responsável. O método de análise tem de considerar fatores diferenciados. A base dos desacertos não é a mesma. Os defeitos no funcionamento dos sistemas utilizados diferem. Num há construção, noutro, demolição. A construção interrompeu-se aí pelos anos 1950. Ao instaurar-se o revisionismo, começou a destruição gradual, mas continuada, do sistema socialista que vai durar mais de três décadas. Destruindo, os revisionistas não conseguiram, simultaneamente, erigir em toda a plenitude o capitalismo. A operação resultou num regime híbrido que mistura formas socialistas com métodos de exploração capitalista. A desorientação gera o caos na vida econômica, política e social na União Soviética. A experiência demonstra, assim, ser difícil converter uma economia socialista consolidada em economia de mercado capitalista.
Não há como negar, existem duas realidades bem definidas, dois objetos precisos de pesquisa científica. Somente desse modo pode-se aprofundar o conhecimento de erros e enganos presumíveis na construção da nova sociedade, seus desencontros com a dialética que é a "alma do marxismo". E também avaliar devidamente o verdadeiro significado do falso socialismo – o socialismo real – que é a fase de transição para o capitalismo. Todos os críticos do socialismo (refiro-me às pessoas honestas) que não levam em consideração tais particularidades terminam caindo na confusão generalizada, incapazes de fundamentar o processo da crise que se desenvolve no movimento progressista. Perdem a perspectiva da transformação revolucionária do mundo. Giram nas órbitas cinzentas do praticismo.
A ausência de horizontes límpidos no campo da luta social relaciona-se com o desprezo, que se acentua, pela teoria, entre os contestadores do socialismo científico. As idéias de Marx, Engels e Lênin (para não falar nas de Stalin), no que tange à revolução e à luta pelo comunismo, são postas em suspeição. Todavia, não se pode ver o presente com olho crítico e enxergar o futuro com segurança sem o apoio da teoria revolucionária.
“Injustificável o menosprezo pelas conquistas da teoria científica operária”.
Antes de Marx e Engels, os estudiosos da vida social reconheciam os males que o sistema capitalista causava, mas não sabiam explicar suas origens. Dominava o empirismo, inventavam-se soluções artificiais. Foram aqueles dois gênios da humanidade que elevaram o movimento espontâneo da luta social à categoria de ciência. Daí por diante já não se caminhava às cegas. O proletariado passou a dispor de uma arma insubstituível em seu combate contra a burguesia. E foi assim que chegou à Revolução Socialista.
Os críticos do socialismo, que vêem erros em tudo e por toda parte, alheios à ciência social, ficam na superfície dos fenômenos localizados, não vão à sua essência. Geralmente equivocam-se, deixam sem respostas convincentes questões cruciais do movimento operário. Para eles vale somente a prática. Mas a teoria não é algo abstrato, sem relação com a vida. A prática é a base do conhecimento, no entanto, é a teoria que generaliza a experiência, que revela as leis objetivas em atuação, que dá ao homem a consciência da necessidade.
Como explicar e justificar ser a classe operária a força dirigente da revolução e da construção da nova sociedade? Por que se faz necessária a existência de um partido de vanguarda? Por que é impossível chegar ao socialismo sem confronto revolucionário com o Estado da burguesia? De onde provém o lucro dos capitalistas? Respostas precisas somente poderão ser dadas pela teoria que reflete a essência do fenômeno em questão. O lucro não se origina propriamente da ganância do explorador, como a hegemonia do proletariado na revolução não é ditada por razões voluntaristas. O socialismo ruiu na União Soviética. Há quem diga que a causa foi o marxismo ter envelhecido. A verdade é que, embora algumas teses do marxismo hajam sido superadas, ou mal aplicadas, apenas a doutrina marxista é capaz de revelar os motivos da ruína porque retrata a realidade em movimento, as leis objetivas em ação. É a única a indicar os caminhos verdadeiros do progresso social.
O que ocorreu na construção socialista, particularmente na URSS, constitui vasta experiência não sistematizada ainda, um enorme material de trabalho para a pesquisa. Essa imensa e complexa tarefa, que diz respeito ao futuro da humanidade, vai demandar muito esforço teórico, a mobilização de todas as energias criadoras do movimento operário. Não pode ser resolvida da noite para o dia. Exige perseverança, correta interpretação da doutrina dialética dos clássicos do marxismo, espírito criativo, inovador. Os novos problemas serão solucionados de maneira nova, com a ajuda, porém, do conhecimento científico.
“Tanto o mecanicismo como o espontaneísmo são categorias do idealismo filosófico”.
É falho o pensamento dos que, negando a ciência, falam de ideologização da teoria revolucionária. Desconhecem a estreita relação entre a ideologia e a teoria. O marxismo não é uma ciência neutra, como são em geral as ciências naturais. É a ideologia da classe operária, sua concepção revolucionária do mundo. Não serve, nem pode servir à burguesia ou mesmo a outras classes da sociedade. Sabe-se que há apenas duas ideologias – a burguesa e a proletária. Não existe teoria à margem ou acima das classes. Quando se fala em teoria procura-se exprimir de certo modo as idéias e inclinações substanciais de terminada classe, no caso, o proletariado.
É falho também o argumento sobre "ideologismo abstrato", ou sobre “esquemas teóricos preestabelecidos". Com isso, tenta-se atingir, deformando conceitos, o partido marxista-leninista. Mas patenteia-se, ao mesmo tempo, a subestimação da teoria como guia para a ação revolucionária. Declara-se que o partido "não deve possuir qualquer filosofia" e tem de evitar abstrações ideológicas. Sem filosofia própria e objetivos corretos apoiados na teoria de vanguarda, o partido se converte num ajuntamento eventual levado pela correnteza do movimento espontâneo. Em lugar da organização consequente da luta, a improvisação mal definida.
Lênin dizia que "não pode haver um forte partido socialista sem uma teoria revolucionária que agrupe os partidários do socialismo". E assinalava que "sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário". Verdades incontestáveis. Não chega a ser um partido socialista aquele que prescinde da teoria. Quando muito, será uma frente política agrupando inúmeras tendências. A unidade torna-se praticamente impossível.
Certamente, os praticistas, os espontaneístas também falam da importância da teoria. Mas a concepção que têm de teoria é sui generis. Dizem: "construir a teoria a partir das experiências de luta dos trabalhadores, com o aprendizado prático, com o constante avanço de nossa capacitação política, vista como reflexão, debate e estudos apoiados em nossa ação concreta". Que tem isso a ver com a teoria da transformação da sociedade? É puro espontaneísmo, ilusão fugaz. Dos conflitos entre patrões e operários nasce apenas o trade-unionismo. Dos recontros entre polícia, a serviço do dono do solo, e os invasores de terrenos que buscam construir seus barracos o que desponta é o populismo. Não nasce daí a teoria revolucionária, a consciência socialista.
Já dizia Karl Kautsky, quando era marxista, que "a consciência socialista moderna unicamente pode surgir sobre a base de um profundo conhecimento científico". É produto não da luta quotidiana, mas da elaboração intelectual que sistematiza a experiência da luta da classe operária tomada globalmente e não isoladamente, num só país. Essa elaboração teórica é a doutrina do socialismo científico. A luta dos partidos revolucionários inclui a transmissão dessa idéia fundamental aos trabalhadores, visando a dar-lhes consciência socialista. É adquirindo essa consciência que o proletariado compreende a sua missão e o verdadeiro conteúdo da luta de classes, aprende a ligar os conflitos diários com a perspectiva revolucionária. O movimento de emancipação dos trabalhadores toma formas mais combativas e avançadas quando estes ganham a compreensão de que o capitalismo é um sistema com trajetória definida, limitado por suas próprias contradições internas, que deve ser substituído, através da luta de classes do proletariado, por outro sistema, radicalmente oposto ao capitalismo, o socialismo.
Prescindir da teoria, ou rebaixar seu papel, é uma forma de descartar o socialismo, são tentativas de construir utopias com dados da realidade contraditória não trabalhados cientificamente. Constituem variantes das idéias, estas sim, ultrapassadas, da social-democracia. Na situação atual, quando passam a primeiro plano os problemas estratégicos da luta revolucionária, a teoria, que não deve ser confundida com dogmatismo, tem função ainda mais importante. Das três formas de luta de classes – econômica, política, teórica – a que se referia Engels, precisamente a luta teórica ganha maior dimensão nos dias que vivemos.
Defender e desenvolver a teoria marxista é uma exigência impostergável da época atual. E isso se faz não de maneira abstrata, mas ligada à luta concreta no terreno das idéias, no combate ao capitalismo cada vez mais selvagem, na ação política que organiza e educa as massas.
João Amazonas é presidente nacional do Partido Comunista do Brasil – PCdoB.
EDIÇÃO 20, FEV/MAR/ABR, 1991, PÁGINAS 36, 37, 38, 39
Nenhum comentário:
Postar um comentário