Com Manuella Bezerra de Melo em http://cafedoavesso.blogspot.com/
Acredite você ou não em teoria da evolução, nos macaquinhos ou na criação divina, seja lá de onde diabos a gente venha, quando surgimos em forma de matéria no universo, a partir de então, a gente percebe que precisa escolher. Desde sempre, desde que me entendo por gente, a escolha mais importante da minha vida foi a de ser militante. Ser militante é talvez a condição mais difícil de escolha para um ser humano. Quem escolhe ser militante precisa refazer a mesma escolha todos os dias. E se virar do avesso, fazer das tripas coração para não fraquejar no meio do caminho.
Eu não sei como foi para os outros. Já ouvi falar de quem fez a escolha tarde, possivelmente porque se convenceu tarde. A minha foi bem cedo. Fazia um sol de rachar, eu devia ter uns 6 ou 7 anos e brincava na beira da praia com outras crianças quase em frente a nossa casa de veraneio. Éramos muitas, entre elas, filhos de veranistas – como eu - , filhos de moradores, de pescadores e pipoqueiros, todas crianças, todas filhas do mundo brincando na mesma areia, partilhando os brinquedos, a alegria, a inocência.
Nesse dia uma pessoa me disse que com certas crianças, era pra eu brincar, mas não deveria me misturar, pois eu era diferente delas, porque eu era especial. Quem me disse isso se referiu ao fato de eu ser filha de um médico e uma dentista e de fulaninha e cicraninho serem do pescador. Foi o primeiro dia que eu senti nojo de algo que não era de comer.
De fato, este episódio também me fez perceber que eu era mesmo diferente, mas era diferente justamente daquela pessoa que, de alguma forma, me alertou que no mundo existia algo que eu ainda não tinha compreendido, mas já detestava com todas as minhas forças: O preconceito e as injustiças. E naquele dia eu descobri que tinha um lado. E seria nele que eu permaneceria. Foi o dia da minha escolha.
A cena nunca desapareceu da minha memória. Lembro da cor do meu biquíni e dos lábios da pessoa se movendo para me transmitir esta mensagem. E sempre que meus neurotransmissores cerebrais retornam àquele dia, o embrulho que sinto no estômago é o mesmo, como uma resposta automática do meu organismo àquele absurdo medonho. E este mesmo embrulho me acompanhou em milhares de outras situações. Como quando na sexta-série uma menina xingou uma amiga negra no intervalo da aula na escola cristã em que sempre estudei, ou quando eu via as crianças dormindo na rua e pedindo comida no sinal, e eu me perguntava se fazia sentido, ou porque eu tinha sido escolhida para ter.
O tempo me fez descobrir que este maldito embrulho é quem me faz não vacilar, mesmo derrotada. E uma mistura disso com meu ascendente em capricórnio e minha orixá protetora e guerreira, uma bando de livros de Marx ou sobre antropologia e sociologia – que me explicaram que eu ter e o outro não nada tinha a ver com o estado karmico de cada um - foram os responsáveis para que todos os dias da minha vida eu continuasse convencida de que ‘ser militante’ é a minha condição nata, e que é nela que eu me completo, e que é essa indignação com a fome e com a falta de amor do mundo que rege todos os meus passos.
Na infância, ser militante é quase energético. Você se junta com as minorias da escola e despreza, briga e sofre bullying dos opressores populares. Se for feito eu, passa a semana sendo mandada pra psicóloga e pra secretaria porque saiu no tapa com a menina loirinha estúpida e preconceituosa pra defender o gordinho da classe
Só na adolescência é que nasce a consciência social, o entendimento e a compreensão. É por isso que a juventude tem um estado nato de rebeldia, àqueles que são rebeldes, logicamente. Porque na hora que você finalmente compreende que todas àquelas suas indagações de fato continuam sem sentido algum mesmo com sua infância tendo passado, aí você quer porque quer dar um jeito de resolver o problema. E a resolução destes problemas só vem com luta de classes. E você associa tudo que estudou nas aulas de história da Tia Ilca, o passado ao presente. Aí você lê Marx e é caixão e vela preta.
Então você se envolve, se entrega, se revolta, chora litros. E se emociona. Muito. E sempre. Com a história, com a solidariedade, com o colega que também luta. E isso vai regendo todas as suas escolhas de vida adiante. Com quem você se envolve, quem são os seus amigos, quem você ama, a profissão que você vai escolher e mais, a forma e a postura que você terá com essa profissão, a tua ética, teus princípios, a forma com que você fala com as pessoas, a maneira com que você as trata, todos os seus movimentos são regidos com o objetivo de construir um mundo melhor, de transformar o planeta e de levar mais amor a ele.
Ser militante é sim uma escolha difícil. É abandonar a condição de ‘ser passivo’ e assumir posições, descer do muro. É ser a excluída na infância, a estranha na adolescência e a louca que fala sobre a importância da soberania internacional e autonomia dos povos diante do imperialismo na vida adulta. É ser a chata que defende o estado da Palestina, o desenvolvimento nacional e manda não jogar papel na rua – e, por isso, fica sem namorado. É abrir o bocão pela igualdade de gênero e condição sexual e ficar um final de semana inteiro em um seminário para discutir como fazer para garantir para todos o direito à comunicação através da regulamentação dos meios. E ficar ensinando compulsivamente ao filho que todos os seres humanos são iguais e tem os mesmos direitos, porém diferentes, cada um com sua peculiaridade, mas lindos, todos lindos e especiais.
Ser militante é escolher muitas vezes ir pra uma passeata no lugar de estar na praia com os amigos. É confrontar sem medo. É ser chamada de parcial pelos colegas e não ser chamada para muitos trabalhos por conta das suas posições claras e expostas, mas é ter compromisso com a verdade e responsabilidade até na hora de escrever uma matéria sobre o crescimento dos campeonatos de gamão e dominó no Estado onde mora. Ser militante é ter certeza que aquela reunião do sábado de manhã finalmente vai mudar o mundo a garantir os Direitos Humanos básicos à toda população e também a Dona Maria, lá do Alto do Mandú, que não é em nada pior do que você ou que sua mãe pra ter que ficar três meses morrendo de dor na fila de espera de um hospital esperando para ser atendida.
Mas ufa, quanta coisa ao mesmo tempo. É muita informação. E aí você pergunta: Mas final de contas, minha filha, finalmente, quando é que você vai mudar esse bendito desse mundo, que desde de pequena que tu tá nessa pendenga sem fim? A resposta é: Não faço a vaga idéia. Mas a maior de todas as magias de ser militante é justamente não se importar em mudar o mundo para que o outro, no futuro, usufrua e desfrute desse mundo lindo e mudado, que um dia há de chegar. Mas se há.
Acredite você ou não em teoria da evolução, nos macaquinhos ou na criação divina, seja lá de onde diabos a gente venha, quando surgimos em forma de matéria no universo, a partir de então, a gente percebe que precisa escolher. Desde sempre, desde que me entendo por gente, a escolha mais importante da minha vida foi a de ser militante. Ser militante é talvez a condição mais difícil de escolha para um ser humano. Quem escolhe ser militante precisa refazer a mesma escolha todos os dias. E se virar do avesso, fazer das tripas coração para não fraquejar no meio do caminho.
Eu não sei como foi para os outros. Já ouvi falar de quem fez a escolha tarde, possivelmente porque se convenceu tarde. A minha foi bem cedo. Fazia um sol de rachar, eu devia ter uns 6 ou 7 anos e brincava na beira da praia com outras crianças quase em frente a nossa casa de veraneio. Éramos muitas, entre elas, filhos de veranistas – como eu - , filhos de moradores, de pescadores e pipoqueiros, todas crianças, todas filhas do mundo brincando na mesma areia, partilhando os brinquedos, a alegria, a inocência.
Nesse dia uma pessoa me disse que com certas crianças, era pra eu brincar, mas não deveria me misturar, pois eu era diferente delas, porque eu era especial. Quem me disse isso se referiu ao fato de eu ser filha de um médico e uma dentista e de fulaninha e cicraninho serem do pescador. Foi o primeiro dia que eu senti nojo de algo que não era de comer.
De fato, este episódio também me fez perceber que eu era mesmo diferente, mas era diferente justamente daquela pessoa que, de alguma forma, me alertou que no mundo existia algo que eu ainda não tinha compreendido, mas já detestava com todas as minhas forças: O preconceito e as injustiças. E naquele dia eu descobri que tinha um lado. E seria nele que eu permaneceria. Foi o dia da minha escolha.
A cena nunca desapareceu da minha memória. Lembro da cor do meu biquíni e dos lábios da pessoa se movendo para me transmitir esta mensagem. E sempre que meus neurotransmissores cerebrais retornam àquele dia, o embrulho que sinto no estômago é o mesmo, como uma resposta automática do meu organismo àquele absurdo medonho. E este mesmo embrulho me acompanhou em milhares de outras situações. Como quando na sexta-série uma menina xingou uma amiga negra no intervalo da aula na escola cristã em que sempre estudei, ou quando eu via as crianças dormindo na rua e pedindo comida no sinal, e eu me perguntava se fazia sentido, ou porque eu tinha sido escolhida para ter.
O tempo me fez descobrir que este maldito embrulho é quem me faz não vacilar, mesmo derrotada. E uma mistura disso com meu ascendente em capricórnio e minha orixá protetora e guerreira, uma bando de livros de Marx ou sobre antropologia e sociologia – que me explicaram que eu ter e o outro não nada tinha a ver com o estado karmico de cada um - foram os responsáveis para que todos os dias da minha vida eu continuasse convencida de que ‘ser militante’ é a minha condição nata, e que é nela que eu me completo, e que é essa indignação com a fome e com a falta de amor do mundo que rege todos os meus passos.
Na infância, ser militante é quase energético. Você se junta com as minorias da escola e despreza, briga e sofre bullying dos opressores populares. Se for feito eu, passa a semana sendo mandada pra psicóloga e pra secretaria porque saiu no tapa com a menina loirinha estúpida e preconceituosa pra defender o gordinho da classe
Só na adolescência é que nasce a consciência social, o entendimento e a compreensão. É por isso que a juventude tem um estado nato de rebeldia, àqueles que são rebeldes, logicamente. Porque na hora que você finalmente compreende que todas àquelas suas indagações de fato continuam sem sentido algum mesmo com sua infância tendo passado, aí você quer porque quer dar um jeito de resolver o problema. E a resolução destes problemas só vem com luta de classes. E você associa tudo que estudou nas aulas de história da Tia Ilca, o passado ao presente. Aí você lê Marx e é caixão e vela preta.
Então você se envolve, se entrega, se revolta, chora litros. E se emociona. Muito. E sempre. Com a história, com a solidariedade, com o colega que também luta. E isso vai regendo todas as suas escolhas de vida adiante. Com quem você se envolve, quem são os seus amigos, quem você ama, a profissão que você vai escolher e mais, a forma e a postura que você terá com essa profissão, a tua ética, teus princípios, a forma com que você fala com as pessoas, a maneira com que você as trata, todos os seus movimentos são regidos com o objetivo de construir um mundo melhor, de transformar o planeta e de levar mais amor a ele.
Ser militante é sim uma escolha difícil. É abandonar a condição de ‘ser passivo’ e assumir posições, descer do muro. É ser a excluída na infância, a estranha na adolescência e a louca que fala sobre a importância da soberania internacional e autonomia dos povos diante do imperialismo na vida adulta. É ser a chata que defende o estado da Palestina, o desenvolvimento nacional e manda não jogar papel na rua – e, por isso, fica sem namorado. É abrir o bocão pela igualdade de gênero e condição sexual e ficar um final de semana inteiro em um seminário para discutir como fazer para garantir para todos o direito à comunicação através da regulamentação dos meios. E ficar ensinando compulsivamente ao filho que todos os seres humanos são iguais e tem os mesmos direitos, porém diferentes, cada um com sua peculiaridade, mas lindos, todos lindos e especiais.
Ser militante é escolher muitas vezes ir pra uma passeata no lugar de estar na praia com os amigos. É confrontar sem medo. É ser chamada de parcial pelos colegas e não ser chamada para muitos trabalhos por conta das suas posições claras e expostas, mas é ter compromisso com a verdade e responsabilidade até na hora de escrever uma matéria sobre o crescimento dos campeonatos de gamão e dominó no Estado onde mora. Ser militante é ter certeza que aquela reunião do sábado de manhã finalmente vai mudar o mundo a garantir os Direitos Humanos básicos à toda população e também a Dona Maria, lá do Alto do Mandú, que não é em nada pior do que você ou que sua mãe pra ter que ficar três meses morrendo de dor na fila de espera de um hospital esperando para ser atendida.
Mas ufa, quanta coisa ao mesmo tempo. É muita informação. E aí você pergunta: Mas final de contas, minha filha, finalmente, quando é que você vai mudar esse bendito desse mundo, que desde de pequena que tu tá nessa pendenga sem fim? A resposta é: Não faço a vaga idéia. Mas a maior de todas as magias de ser militante é justamente não se importar em mudar o mundo para que o outro, no futuro, usufrua e desfrute desse mundo lindo e mudado, que um dia há de chegar. Mas se há.
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