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segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Desafios da democracia e da produtividade no socialismo - Entrevista de Luis Fernandes à Revista Princípios (2007) Por Adalberto Monteiro e Carolina Maria Ruy*


Entrevista com o professor Luis Fernandes, então presidente da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) [OUT/NOV, 2007], e autor do livro O enigma do Socialismo Real


Princípios – Em seu livro O Enigma do Socialismo você apresenta a opinião de que os dois maiores desafios da União Soviética foram a edificação da democracia socialista e a produtividade da economia e do trabalho. Em sua visão, quais os acertos e os erros desses dois aspectos na experiência soviética?

Luis Fernandes – Em primeiro lugar não podemos abstrair da avaliação os fortes condicionantes históricos que marcaram a experiência soviética. A teoria marxista, no século XIX, esperava que as primeiras experiências socialistas surgissem nos países mais avançados do capitalismo, porque neles a produção fabril moderna estaria mais consolidada e, com isso, a própria contradição entre o capital e o trabalho mais aguçada. Com as condições geradas pela fase chamada por Lênin de etapa do imperialismo, ou fase monopolista do capitalismo, o contexto mundial se alterou e o processo histórico levou as primeiras experiências socialistas – em particular a primeira de todas, que é a experiência soviética –, a triunfarem em países que não compunham o centro do sistema capitalista.

Antes da Revolução de Outubro de 1917, as condições da Rússia eram bem diferentes das concebidas no século XIX pela teoria marxista clássica: um país semiperiférico que combinava uma acelerada industrialização e transição para o capitalismo nas cidades – iniciada havia poucas décadas – com o predomínio de estruturas econômico-sociais pré-capitalistas no campo, onde viviam mais de 80% da população. Assim, desde o primeiro momento, para além do desafio da construção do socialismo, a URSS teve de se deparar com os desafios da contínua industrialização da sua economia e do enfrentamento com o atraso da sua capacidade produtiva. Foi uma experiência que, mesmo tendo colocado na ordem-do-dia a superação do capitalismo, o fez tendo de criar, simultaneamente, pré-condições do próprio desenvolvimento capitalista.

Deste ponto de vista, o maior êxito da URSS foi justamente o de ter viabilizado um processo de industrialização massiva e de ter sustentado durante décadas, nos marcos desse esforço de recuperação do atraso, os índices de crescimento econômico mais elevados do mundo.
Entretanto, as formas encontradas para enfrentar, nos marcos da transição socialista, os desafios clássicos do desenvolvimento acabaram por esbarrar em seus próprios limites. A opção por estatizar quase que completamente as forças produtivas e mobilizar de forma centralizada e detalhista a sua operação se mostrou adequada para promover a industrialização na fase inicial do desenvolvimento soviético, mas uma vez instalado um complexo industrial integrado e completada a etapa do crescimento econômico extensivo, estes mesmos mecanismos deixaram de promover a contínua elevação da produtividade da economia e do trabalho. A partir daí houve uma tendência declinante nas taxas de crescimento econômico e de produtividade do trabalho, e retornos decrescentes nos investimentos feitos de forma centralizada na economia soviética. Não era propriamente um quadro de estagnação, mas sim de tendência à estagnação nos marcos desse modelo de economia estatal de comando altamente centralizado.

O grande êxito desse modelo, que acabou se tornando a matriz das primeiras experiências socialistas no mundo, foi ter levado a URSS a se transformar de um país extremamente atrasado em grande potência mundial. E a grande limitação dessa experiência foi a de não ter conseguido superar as formas de seu esforço inicial de desenvolvimento e, com isso, não ter enfrentado e resolvido o problema da contínua elevação da produtividade no socialismo. Do ponto de vista da edificação democrática, mais uma vez, devemos examinar o contexto histórico específico do qual emergiu a revolução soviética. A Rússia, recém-saída do czarismo, possuía reduzida experiência de vida democrática, ainda que em termos liberais. O triunfo das encadeadas revoluções de 1917 se deu na seqüência de prolongada luta de resistência contra o absolutismo czarista, em que, progressivamente, forças políticas situadas mais à esquerda foram assumindo a liderança do processo, em meio à destruição e à crise provocadas pela Primeira Guerra Mundial. Tudo isso legou importantes limitações e barreiras para a edificação de novas formas democráticas nos escombros do antigo Império Russo.

As formas institucionais que inspiraram a construção do novo Estado Soviético – que procuravam reproduzir o que Marx havia resgatado e ressaltado na experiência da Comuna de Paris – acabaram por não ensejar a capacidade de mobilização concentrada necessária para lidar com os grandes embates militares, políticos e geopolíticos que a URSS teve de enfrentar desde o seu início. Essa situação gerou uma tendência à sobreposição dos mecanismos democráticos de tipo comunal por uma crescente fusão do partido com o Estado, onde a estrutura vertical hierárquica do Partido Bolchevique passou a nuclear o Estado, o que acabou tolhendo o potencial democrático dessa primeira experiência socialista.

Em suma, o grande êxito da URSS foi a sua própria criação e sobrevivência, e o papel transformador que ela passou a desempenhar no mundo. Destacam-se, aqui, o seu papel crucial na derrota do nazismo na II Guerra e na promoção dos processos de descolonização, a partir do seu apoio decisivo aos movimentos antiimperialistas. A URSS ajudou a moldar o mundo como nós o conhecemos ao desarticular e deslegitimar a prática do colonialismo, e ao consolidar o reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação. Isso representa um profundo e inegável legado democrático para toda a humanidade.

Contudo, o pleno desenvolvimento do potencial democrático do socialismo na URSS acabou sendo tolhido, em parte pelas circunstâncias históricas já mencionadas, em parte pela cristalização de uma leitura parcial e dogmática da própria teoria marxista, transformada em doutrina oficial de Estado.

Princípios – Em seu livro O Enigma do Socialismo você afirma que “a ausência de um exame profundo sobre os dilemas e impasses da configuração do Estado socialista pela teoria marxista acabou sendo fatal para o desenvolvimento das próprias experiências socialistas no século XX”. Então, houve uma deficiência na leitura? Ou no marxismo não há uma teoria sobre o Estado?

Luis Fernandes – Marx tem uma teoria do Estado própria e, como qualquer teoria, ela deve ser desenvolvida, não se trata de uma verdade completa e acabada. A principal contribuição de Marx para a teoria política reside justamente na associação de uma visão realista – que reconhece no Estado um órgão de dominação caracterizado pelo monopólio coercitivo e administrativo territorializado – com uma aguda compreensão do papel desempenhado por esse monopólio da violência na produção e reprodução da clivagem da sociedade em classes. Contudo, as indicações trazidas pela teoria marxista clássica do século XIX sobre a institucionalidade política de experiências socialistas que abrissem caminho para a superação desta clivagem classista da humanidade nunca foram muito detalhadas. E nem poderiam ser pois Marx e Engels não vivenciaram essa experiência e tomaram como referência a efêmera e fracassada experiência da Comuna de Paris, que se desenrolou em contexto histórico muito específico.

Nas poucas reflexões por eles desenvolvidas, procurando indicar os rumos do que seria uma sociedade socialista, já há indicações a sugerir que a simples generalização de formas de democracia direta e participativa poderia não dar conta dos dilemas da construção institucional do Estado numa transição socialista.

Princípios – Esse pode ter sido um dos motivos da derrocada da URSS?

Luis Fernandes – O não desenvolvimento da teoria marxista para lidar com os novos desafios apresentados pelas primeiras experiências socialistas certamente é um fator crucial. Estes desafios se apresentavam tanto na dimensão política, quanto econômica e cultural. Do ponto de vista econômico, a experiência soviética não logrou estruturar um novo mecanismo econômico capaz de alavancar a contínua elevação da produtividade do trabalho uma vez concluído, com sucesso, o esforço de montagem de uma base industrial abrangente. No capitalismo, esse mecanismo é a própria anarquia da produção, que obriga as empresas a buscarem a constante elevação da sua produtividade para enfrentar e desarticular suas concorrentes, a um elevado custo social. A URSS não conseguiu gerar um mecanismo análogo a essa “destruição criativa”, a não ser nas áreas de fronteira tecnológica do confronto geopolítico com o mundo capitalista: indústria bélica, indústria aeroespacial, programa nuclear etc. Fora dessas áreas, manteve-se uma grande distância entre o conhecimento gerado nos institutos de pesquisa e a sua incorporação e generalização no sistema produtivo. Em suma, não se logrou estruturar um mecanismo indutor da inovação na economia como um todo, o que acabou ensejando uma tendência crescente à estagnação econômica, como mencionei antes.

Isso contribuiu para compor um quadro de “crise de legitimação” no seio do próprio poder soviético. A legitimidade desse poder não era referida ao processo democrático da escolha dos seus dirigentes, e sim à superioridade histórica do socialismo em relação ao capitalismo. Segundo a versão de doutrina marxista então dominante, essa superioridade se materializava no desempenho econômico. Quando este começou a dar sinais de perda de dinamismo face aos novos pólos ascendentes no mundo capitalista, instalou-se um processo não só de corrosão gradativa da legitimidade do Estado soviético, como de crise ideológica de seus dirigentes. Generalizou-se um questionamento interno em relação à capacidade de superação de tal quadro, agravado pela intensificação da corrida armamentista fomentada pelo governo Reagan nos anos ’80 e que culminou na capitulação completa de Gorbachev ao final do período da perestroika. Neste ponto, a “crise de legitimação” se transformou em crise geral e resultou no desmantelamento do antigo campo socialista e na própria dissolução da União Soviética.

Princípios – Depois da derrocada, partidos e movimentos enfrentaram uma crise geral de perspectiva. Em sua opinião, em que grau houve a superação dessa crise?


Luis Fernandes – Este é um tema para debate. No meu entender, na medida em que o capitalismo socializa cada vez mais os processos de produção de riqueza, o socialismo é uma necessidade histórica cada vez mais premente para lidar com as contradições dessa forma de produção. Contudo, do ponto de vista político, o quadro ainda continua desfavorável para o socialismo como alternativa imediata. Antes, existiam dois sistemas mundiais em oposição no sistema internacional. O mundo estava polarizado por dois modelos sociais e políticos antagônicos, cada qual com o seu sistema mundial próprio. Com a derrocada do campo socialista isso deixa de existir. O que temos, hoje, são experiências socialistas isoladas, não integradas em um bloco sistêmico mundial. Nesse contexto, está no centro da agenda justamente a luta contra as profundas assimetrias geradas pelo capitalismo no sistema internacional. O que entra na ordem-do-dia para países que se confrontam com essa concentração de riqueza e poder no mundo é uma agenda de desenvolvimento nacional, de conteúdo antiimperialista em sua essência, mas não imediatamente socialista. Ocorreu uma espécie de depuração das forças socialistas – boa parte delas, na verdade, deixou de ser socialista –, muitas inclusive mudando o nome dos partidos, o que foi particularmente sentido no antigo movimento comunista. Por outro lado, pela própria lógica do capitalismo, multiplicaram-se os movimentos contra-hegemônicos. O mundo não caminhou para a unipolaridade após a derrocada do socialismo, ele caminha para uma crescente multipolaridade. Este é o contexto em que as forças que ainda reivindicam o socialismo podem atuar. Coloca-se como necessidade imediata uma agenda muito mais antiimperialista e nacional-desenvolvimentista do que propriamente socialista, embora contraditoriamente, a necessidade histórica do socialismo seja cada vez mais forte no mundo.

Princípios – Nessa linha, como você avalia a experiência de países como Cuba, Venezuela, Vietnã e China?

Luis Fernandes – São experiências distintas. Cuba vive as circunstâncias do cerco movido por uma potência à qual encontra-se praticamente encostada geograficamente. Isso impõe condições extremamente adversas e não permite que ela se envolva em experimentações tão amplas quanto as de outros países socialistas, porque o imperativo da sobrevivência é muito forte. Essas condições marcam profundamente a trajetória cubana e ressaltam, igualmente, seu sucesso. Quando se iniciaram a derrocada do antigo campo socialista e o colapso da URSS, há dezoito anos, ninguém apostava na possibilidade de sobrevivência de Cuba. Predominava a sensação de que em muito pouco tempo o socialismo cubano se dissolveria. Boa parte da legitimidade da experiência socialista de Cuba advém justamente de seu enraizamento nacional numa lógica antiimperialista.

Já o caso de China e Vietnã se dá em um contexto diferenciado, pois esses países não estão subordinados ao mesmo tipo de cerco ou a uma ameaça geopolítica tão próxima. Tanto a China, que apontou o caminho, quanto o Vietnã, que reproduziu uma política semelhante, trataram de enfrentar o desafio da produtividade que não fora adequadamente confrontado na URSS. O que marca essas duas experiências é a opção por preservar múltiplas estruturas econômico-sociais e formas de propriedade, ainda que sob o predomínio de formas socializadas, e a concorrência entre essas formas de propriedade – mesmo entre empresas estatais – como mecanismo para promover a elevação contínua da produtividade do trabalho e o desenvolvimento sustentado da economia. No que se refere ao desempenho econômico, pode-se ressaltar o sucesso de ambas as experiências, sobretudo a da China, que vem sustentando ao longo de um quarto de século índices de crescimento econômico sustentado sem precedentes. Seu desempenho é superior até mesmo ao da industrialização acelerada da URSS, que enfrentou muitas oscilações no seu crescimento econômico, sem mencionar a destruição provocada pela invasão e ocupação nazista na Segunda Guerra. A experiência chinesa, assim, apresenta lições importantes para o desenvolvimento e atualização da teoria marxista.

Já a experiência da Venezuela talvez tenha mais relevância para as forças socialistas e de esquerda que atuam em regimes democrático-liberais mais consolidados. A Venezuela procura empreender um processo de transição para o socialismo conduzido inteiramente dentro da legalidade democrática. Seu projeto é o da conquista e preservação da hegemonia dessa perspectiva transformadora nos marcos do que é, em última instância, um Estado de direito burguês. Esta é uma experiência em curso, e não se pode dizer ainda qual será o seu desenlace. Entretanto, para as forças socialistas atuantes na maior parte do mundo, talvez ela seja portadora uma lição política mais abrangente, mostrando ser possível acumular forças e estruturar um projeto transformador contra-hegemônico combinando mobilização de massas e atuação política nas instituições representativas de Estados democrático-liberais. Em circunstâncias históricas diferentes, é esse mesmo caminho que vimos trilhando no Brasil e em outros países da América Latina.

Princípios – Que perspectiva você vê hoje para o avanço do projeto socialista?

Luis Fernandes – Penso que o projeto socialista tem de se enraizar nos principais movimentos de contestação e questionamento dos interesses e forças hoje dominantes no mundo. Uma vez que está na ordem-do-dia, nos países em desenvolvimento, uma agenda eminentemente antiimperialista e de promoção do desenvolvimento nacional, as forças socialistas têm de se enraizar nacionalmente, a partir de suas particularidades históricas, para se constituírem na força mais avançada de luta contra essas iniqüidades e, a partir daí, serem as maiores promotoras dos projetos nacionais de desenvolvimento. Para mim, esse é o grande desafio, sobretudo em países em desenvolvimento como o nosso. Essa é a grande agenda que pode abrir caminho para transformações socialistas no mundo.

Temos, ainda, a referência dos importantes sucessos alcançados pelas experiências socialistas que mencionamos antes. Embora sejam experiências socialistas isoladas, elas têm grande repercussão e impacto no mundo, sobretudo a China. Mas acredito que o principal é encontrar, no curso da vida política de cada país, o caminho para acumular forças e viabilizar transformações mais amplas. Mesmo tendo outras referências, cada país tem de enraizar a alternativa socialista nas particularidades da sua formação econômico-social nacional.

Adalberto Monteiro é o editor de Princípios e Carolina Maria Ruy é secretária de redação (interina).

EDIÇÃO 92, OUT/NOV, 2007, PÁGINAS 32, 33, 34, 35, 36

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