Louro Massagista, o primeiro, agachado
Há coisas que, se não forem escritas, hão de nos assombrar sempre. E ainda que nos exponha, ainda que mal escrito, deve vir a lume o texto que ruminamos como fel, e que exige abandonar as cadeias da reflexão. E desse dever de quem escreve, não posso me esquivar .
Em 2010, vivi a pior coisa que já me aconteceu: a paixão e a morte do meu pai.
Ele foi de uma família longeva. Meu avô, Seu Sinhozim, tem 96 anos. Minha avó, Maria Lopes, morreu com mais de 90. E meu bisa, passou dos 100.
E Seu Louro era um atleta. Segundo ele mesmo, trabalhou em 74 times de futebol, como goleiro ou massagista, dentre eles o Treze, o Guarany de Juazeiro, o Volante (futuro ICASA), o Ferroviário, o Ceará e o Fortaleza. Saiu de casa, no Juazeiro do Norte na adolescência para perseguir seu sonho de ser jogador de futebol. Também foi responsável pelo "Apolo" - não eram populares então as academias - do Ginásio Paulo Sarasate. Foi massagista na COFECO - clube dos funcionários da COELCE, a companhia elétrica do Ceará - e também da AABB - dos funcionários do Banco do Brasil - que funcionava no Náutico. Mesmo aposentado, era árbitro amador de futebol e cuidava do campo de futebol da prefeitura no Quintino Cunha.
O José Freire seria mítico, não fosse a realidade de seus atos, tão concretos. Meu pai não bebia. Não fumava. Não pedia empréstimos. Sempre teve conta bancária, mas jamais teve cartão de crédito ou fez crediários. Meu pai não deixou uma dívida. Jamais a minha mãe, desde que casou com ele, em agosto de 1973, viveu em uma casa alugada. Eles se amaram mesmo. Meu pai jamais engordou desde quando casado. Seus luxos eram assim, muito particulares, mas em todo o resto era de uma simplicidade tão franciscana quanto a generosidade com que gerenciava o perde e ganha da vida. Meu pai ajudava as pessoas. E adorava Elvis Presley. E tinha dois luxos supremos. Ele, que só estudara até a 3ª série do Colégio Salesiano, no Juazeiro do Padim Cícero (de quem era devoto) jamais, nem uma vez, disse a meu irmão ou a mim que trabalhássemos. Dizia: estude. Ele era o pai e nós, filhos: nosso trabalho era aquele.
Era um homem opinioso, orgulhoso, atlético e bom de briga. Falava obsessivamente de futebol, como eu de política. A minha voz, a de meu irmão Roberto e a dele eram quase idênticas. E aprendi a gritar com ele. Acostumado a vida inteira à lida do futebol, o Louro, goleiro, massagista, árbitro, sabia se impor na conversa, no grito ou no sopapo, preciso fosse. Mas isso são memórias que vão principalmente até a adolescência. Meu pai, com o tempo, foi se tornando cada vez melhor, mais humano, menos briguento, mais cordial. Numa estrada de progressiva e inexorável iluminação, foi crescendo moralmente, em caridades, bons conselhos, massagens, palavras de alento que distribuía com aquele jeito tão bonito de andar que ele tinha: andar de jogador de futebol. Meu pai, portanto, era aquele que no mundo do esporte é conhecido como um "prático". Na verdade, deveria se dizer desbravador. Porque, vindo de uma época muito mais difícil no esporte, tendo recebido muito pouco em termos de educação formal, mas movido por uma grande força de vontade, grande inteligência e método, ele venceu e trabalhou toda a vida com futebol, exatamente como queria. E não teve um final triste como o de tantos contemporâneos seus, que inclusive brilharam mais no esporte. Ele, ao contrário, abreviou sua carreira de jogador, mirando mais adiante, tornando-se massagista para assegurar uma maior estabilidade e seguir militando no futebol por mais 40 anos. E deu certo.
Por tudo isso, e muito mais que não consigo ainda escrever, meu pai era um herói, como só podem ser os trabalhadores. E, talvez por tudo isso, todos tínhamos a inabalável certeza de que ele não morreria tão cedo. Há sete anos vivendo fora do Ceará, fui sacudido com o chamado de minha mãe para que viesse ajudar a cuidar dele, gravemente enfermo da vesícula, internado. Não sei o porquê, mas havemos de descobrir, não o operaram logo. Por que o deixaram mais de uma semana, com uma vesícula rompida, sem cirurgia, na UNICLINIC? Havemos de descobrir. Mas o fato, é que esse lutador travou uma excruciante batalha de dois meses contra uma septicemia: uma ultra-sonografia, uma extração de vesícula e cerca de sete laparotomias para tentar debelá-la; depois, uma fístula, uma prótese, cerca de sete endoscopias, uma arteriografia, uma tomografia, uma cápsula-comprimido de tecnologia israelo-estadunidense trazida de São Paulo, mais de 110 transfusões de diversos hemoderivados, uma hemodiálise, uma hemorragia que não cessou até o tirar de nós a 16 de dezembro. Nós fizemos tudo, e ele também.
E confesso que, nem de longe, estava preparado para isso. Quem está preparado para vida? Quem está preparado para a morte, afinal? E foi nessa hora de absoluto desamparo que vieram em nosso socorro os amigos e amigas, uma boa medida desse empreendimento familiar vitorioso do Seu Louro e da Dona Lourdes. Quanto pôde mobilizar nesta hora crítica essa nossa pequena família, que ele iniciou ao mirar decidido a Dona Lourdes, no Grêmio dos Ferroviários no início dos anos 70!
Se houve quem nos esqueceu ou faltou, falta de fato não fez, porque de todos os lados vieram preces, pensamentos positivos, doações voluntárias de sangue, uma ligação amiga, uma visita, a solidariedade de meus camaradas e até de desconhecidos. Gestos que vieram de Minas Gerais, Distrito Federal, Tocantins, dos vizinhos do Nova Assunção, de gente do futebol, da família, de gente do PSDB, do PCdoB, do PPS e do PT, de católicos, da Maçonaria, da comunidade de Nossa Sra. da Assunção, evangélicos, ateus, umbandistas, espíritas, até do movimento Hare Krishna.
Agradeço muito, sobretudo, a inquebrantável atenção e carinho da Dra. Terezinha Arruda, um verdadeiro anjo que nos cercou de afetos e cuidados, assim como Tales Cavalcante, Gorete Leandro, Liliane Neves, João Batista Lemos e seus filhos, André e Renato, Andréa Oliveira, Viviane Rodrigues, Ana Lúcia Viana, Marcelo Martins, padre Álvaro, Taís, Fátima e Eliane Santos. Agradeço à equipe que lutou por ele na Gastroclínica, em nome da Dra. Micheline e dos enfermeiros Eurides e João. Não sei o que seria de nós sem essas pessoas.
Era duro na queda, meu pai. Ao ponto de que só mesmo Dona Lourdes, no casamento, e Dona Mariana, sua neta, arrancaram-lhe flagrantes de riso em fotografias. Ele posava sério, quase sempre. Ser pai tem/tinha dessas coisas. Mas nele, o que havia mesmo era exemplo, vontade de viver, garra para peitar as dificuldades, características que não nos deixam soçobrar, ainda que se nos deva perdoar certo claudicar e as lágrimas de início, sem aquela força imensa, aquela retaguarda que, sempre lá, fez-nos chegar tão longe.
Mas seu Louro não deixou pontas pelo caminho. Determinado, jamais trabalhou em outra coisa que não o esporte, sua irrefreável paixão. Viveu como quis, à sua maneira, e era um homem realizado. E imagino a sua satisfação, ao saber que a 30 de dezembro de 2010, no último jogo do Ferroviário, a Vila Olímpica Elzir Cabral silenciou por um minuto ao recordar seu nome. Mas só um minuto de silêncio, que há muita vida pra viver pela frente.
* A Vila Olímpica Elzir Cabral é a sede do Ferroviário Atlético Clube, o Tubarão da Barra, que fica na Avenida Coronel Carvalho, na Barra do Ceará.
Chorei muito ao ler o seu texto, mas vejo que sua filha também terá tanto orgulho seu como você de seu pai.
ResponderExcluirAbraços fraternos.
Caro amigo Paulo Vinicius,
ResponderExcluirDeixo registrado a minha emoção na leitura de cada palavra sua escrita com paixão de quem teve um pai que o amou intensamente.
Estava presente no Ferroviário X Baraúnas, jogo-festa de apresentação dos novos atletas do Ferroviário para a nova temporada. Tenho certeza, o Louro ( Deda) também estava ali. No silêncio respeitoso da torcida, jogadores, dirigentes do Elzir Cabral a homenagem a quem ele dedicou toda uma vida honrada: ao "tubarão", a família e ao futebol.
Força, meu querido camarada.
Evaldo
Muito emocionante PV. Siga firme na sua luta cotidiana por dias melhores para nosso povo, a melhor forma de retribuir os ensinamentos de seu pai.
ResponderExcluirAbraços,
Augusto Vasconcelos
Parabéns pelo texto. Acredito que ter orgulho, respeito e admiração pela história de vida de nossos pais é mais uma maneira de demonstrar o quantos nós os amávamos.
ResponderExcluirCaro amigo;
ResponderExcluirQue bela homenagem! Assim como outros que já leram esse post, eu também fui às lágrimas. Singela lembrança essa que compartilhas conosco, obrigada.
Desejo que a saudade tua seja composta menos de dor e mais de beleza, de alegria pelos tantos bons momentos partilhados.
Conte sempre conosco. Abraço carinhoso.
Aninha Santos
Meu querido amigo, só quando amamos mesmo podemos escrever algo tão bonito e comovente, mesmo para aqueles que só viram o seu pai de relance. Sinto imensamente não ter podido estar mais com você nesses dias e ter colocado toda a consideração e amizade que tenho por você, pois esses últimos dias também foram difíceis para mim. Mas saiba que nas minhas noites, mesmo que não hajam orações, sempre houve um espaço para dedicar a você e ao seu sofrimento. Força amigo, que a estrada é longa!
ResponderExcluirUma vez ouvir meu pai comentar com certo orgulho que os filhos dele (são cinco) tem caracteristicas diferentes, mas que todos tem traços de sua personalidade. Deve ser assim com todos.
ResponderExcluirNunca estive com seu Pai, mas ao ler esse breve texto e me lembrar de como vc é, tenho a impressão de que o conheci. Pois lembro, que quando vc falava nele era sempre com riqueza de detalhes e muita emoção.
Abraço.
Marcelo Gavião
Primo, eu continuo sendo fã do meu tio e do seu pai, pois, o mesmo era um guerreiro e está com Deus.
ResponderExcluirAbraço.