O papo é pop
Publicado em 05.11.2010, às 14h57
Por Miguel RiosUma nova vilã, daquelas malvadas ao extremo, que dissemina e atrai ódio, de nível igual ou pior que qualquer Odete Roitman ou Nazaré Tedesco, está na mídia. É aquela garota lá do Twitter que nos ofendeu, nós nordestinos, nos indignou mais uma vez, nos fez relembrar preconceitos que pareciam estar se esvaindo, que se mostram ainda vigorosos, que machucam mesmo quem finge não ligar, quem tenta se mostrar acima.
Outra vez, doeu. Outra vez, ele voltou. Aliás, nunca se foi. Só estava mais quieto, nestes tempos de maior patrulha, de menos tolerância com os intolerantes.
Preconceito é difícil de sair da gente. Volta e meia, a gente se surpreende, se flagra, e até se orgulha, dizendo, pensando, compartilhando algum estigma contra o outro.
Mas se é na nossa pele que arde aí nos enfurece. Não pode, não se aceita, é absurdo, é opressor, ultrapassado, injusto.
A pele dos nordestinos queimou. Estigmas e estereótipos queimam mesmo.
A pele de qualquer tuiteiro do Maranhão à Bahia ainda está, no mínimo, coçando. Tem aquele cara que posta dia após dia, insistente, resistente, mensagens contra a autora do ataque, sedento por não deixar barato.
"Como posso ser inferior?", pensa ele. "Sou inteligente, universitário, bonito, uso roupa boa, dentição completa, tenho laptop, carro, amigos no exterior, viajado, falo inglês, comecei no espanhol, já planejo meu MBA. Vou ter sucesso garantido! Como se pode dizer que sou inferior? Como se eu fosse um pobre qualquer, um mundiça desses, pipoca da vida, um beira-canal, que só serve para se apertar em ônibus, sujar a praia. Esse bando de assalariado farofa..."
E a roda do preconceito gira:
"Como posso ser farofa?", pensa um dos assalariados. "Ando de ônibus, moro em subúrbio, mas curto bandas legais, livros legais, filmes de arte. Tenho amigos descolados. Somos questionadores do status quo, dos padrões impostos pela sociedade de consumo. Tenho potencial. Farofa eu? Farofa e pipoca é essa negada ignorante, de gosto ruim, que curte pagode e axé, jeito marginal, enchendo o mundo com som alto de funk de CD pirata. Tenha dó!"
E gira...
"Sou negro sim, mas sou lindo! Curto o meu som e meu jeito moleque. Orgulho de raça, de gostar do que eu gosto, das raízes, de saber dançar melhor que branco. De morar onde moro. De me virar e arranjar algum para meu pai e minha mãe. Eles dois que me criaram com esforço e dignidade. Me fizeram um homem, homem mesmo. Se eu ainda fosse um desses veados safados podiam até falar. Aquilo é que é nojeira. Mas eu não tenho do que me envergonhar."
"Sexualidade não define caráter. O que eu faço na intimidade não é da conta de ninguém. Sou decente. Sou homem igual a qualquer outro. Ninguém se envergonha de estar ao meu lado. Sou másculo, não dou pinta, tenho um namorado sem trejeitos também. Não escandalizamos. Podemos frequentar qualquer ambiente. O problema são essas bichinhas afetadas, estes travestis que sujam a barra dos gays. Um horror."
Continua a girar:
"Se dou pinta é porque eu quero. Essa tropa enrustida de metidos a macho fala mal, mas faz as mesmas coisas que eu entre quatro paredes. E tem inveja do meu sucesso. Tenho jeans Diesel, perfumes Armani, óculos Roberto Cavalli. Até minhas sandálias de praia são de grife. Por isso, não me junto. Morram de inveja, bichas pobres, roupa de sulanca, classe D!"
E a roda vai girando, criando novos julgamentos, batendo neste e naquele, se aproveitando de ideias preconcebidas, crendices, rancores...
Você já teve um dia em que se assemelhou à vilã lá do Twitter, aquela babaca, estúpida, condenável, que te revoltou tanto quando jogou o ácido supercorrosivo do preconceito sobre seu orgulho? Você já destilou desprezo sobre alguém? Eu já.
Pense na fulana do Twitter, pense na queimadura, pense em como dói, pense em como cicatriza demorado.
Pense nela antes de carimbar, com raiva, agressão e afinco, loura de burra, rapaz rico de playboyzinho, negro de maloqueiro, gay de molestador devasso, gostosa de piranha, pobre de ignorante, sertanejo de atrasado, gente da capital de pedante.
Pense bem quando tua veia discriminatória, aquela que pulsa toda vez que vem o desejo de diminuir o outro pela ilusão de se autofortalecer, saltar.
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