Zé Hortência pensou em dizer que a paga seria feita no ano seguinte, junto com o foro do ano entrante. Dois foros para compensar a espera do proprietário. Reteve o impulso na goela que, a custo, engoliu o cuspe grosso. O homem deu as costas, repondo o chapéu de feltro sobre a testa; a descarga de ameaças fora recolhida.
Todo o engenho fora avaliado em 10 mil cruzeiros. No cartório, o tabelião dera fé ao dito do proprietário, inda que sem a certidão de medição do agrimensor. E o foro, anual, pago acima da metade do ajuizado por um sesmeiro.
“Como é que nós vamos fazer!? – inquiriu-se a mulher de Zé Hortência. “Não vamos fazer... Quem vai fazer é a Liga.”! – ajuntou ele.
O ano não fora de abundância, mas as famílias, cada uma, encheram cuias de feijão; feijão brocado mas vendido a um preço módico na feira de Vitória de Santo Antão. A sobra dera para a sustância dos corpos de rijeza magra. Zé Hortência, a mulher e dois filhos, no zelo do que lhes coubera da urdidura do proprietário, comeram o da panela recoberta de tisna. Mas no adiantado da recém-prenhez de Murta – na pia de água-benta, assim fora batizada a mulher de Zé Hortência -, ele alugou a mão de obra de um desconhecido com mulher e filho, ou conhecido por não ter posse nem o direito a pagar foro. A paga pelo uso da terra sumira na fumaça fugidia das panelas; das panelas e das toras de lenha virando brasa.
A duas horas dali, Zé Hortência pediu audiência na Liga de Iputinga. Zé dos Prazeres, o presidente, ouviu-o com paciência de aluno pobre, com disposição para aprender. Zé Hortência lhe propôs que fosse criada uma sociedade pelos foreiros, para a compra do Engenho Galileia.
Zé dos Prazeres julgou-o de alto a baixo, julgando-o o autor de um propósito pioneiro. “Aprovo!”
Na reunião do Partido, mais que a novidade, distinguiu em Zé Hortência um militante posto no prumo do Engenho Galileia. “Se tudo der certo, as 140 famílias vão se sentir abrigadas no Partido Comunista.” Zé Hortência, confiando no presidente da Liga Camponesa, confiou-se na guarda do Partido.
No mesmo ano, foi fundada a Sociedade Agrícola de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco. Na vice-presidência, Zezé da Galileia. Na presidência, Oscar Beltrão, dono do engenho; inda que presidente honorário, o proprietário não se urdiu nas conjuras de expropriação de sua própria terra. Os galileus, ajuizando-se com pouca força, queriam-no ali sem despregar os olhos de seus passos.
No mesmo cartório do registro da escritura do engenho, a SAPPP registrou-se como sociedade para auxílio funerário, construção de escolas e compra de enxadas, foices, estrovengas. A contratação de uma professora para o ensino sob as telha de uma casa de farinha, foi proibida por Oscar Beltrão.
- Mas isso é por lei – objetou Zé dos Prazeres.
- O senhor não é daqui!- o proprietário vira em Zé dos Prazeres um comunista, no discurso de posse na diretoria.
Também proibiu o desconto de despesas com enterros de morto do engenho, na paga do foro. Beltrão chamou a polícia. A diretoria foi intimada à delegacia. Afastou-se de vez, ele, quando Murta disse ao repórter que viera de São Paulo: “A gente enterra defunto com mortalha de papel.”
* Menção honrosa dos Prêmios Literários da Cidade do Recife, com o livro Um presente para o papa e outros contos. Integra as antologias de contos Recife conta o Natal e Panor
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