João Batista Franco Drummond, meu professor
A última vez que estive com o Drummond foi no final de novembro daquele ano terrível, 1976, em Anápolis, Goiás, onde eu morava. Ele havia me encarregado de acompanhar, através do jornal O Popular, de Goiânia, os resultados das eleições municipais realizadas no dia 15.
Por Antônio Carlos Queiroz*
Naquela época, a apuração dos votos, manual, levava dias. Quarenta anos depois, ainda me lembro que estávamos eufóricos. Mesmo com as restrições da Lei Falcão à propaganda eleitoral, que permitia só a divulgação do nome, partido, número, currículo e foto do candidato na televisão, o MDB de Goiás havia eleito um número razoável de prefeitos, seguindo a tendência nacional de avanços significativos do voto de protesto contra a ditadura nas médias e grandes cidades do País.
Nas eleições legislativas de dois anos antes, o PCdoB havia pregado o voto nulo, sem perceber que o fim do “milagre econômico” iria solapar as bases da ditadura. Com os ventos virados, em 1974 a oposição conquistou 16 das 22 vagas em disputa para o Senado, e 161 das 364 (44%) das cadeiras da Câmara dos Deputados. Correndo o risco de perder o controle de sua abertura “lenta, gradual e segura”, o general Ernesto Geisel tomaria providências logo no início do ano seguinte, fechando o Congresso Nacional e decretando o Pacote de Abril, com a determinação de que um terço dos senadores deixariam de ser eleitos, passando a ser indicados pelo general-presidente de plantão. Estava criada a figura do “senador biônico”. Nessa conjuntura, o PCdoB fez ajustes em sua tática e, no começo daquele ano, lançou a “Mensagem aos Brasileiros”, o famoso “documento das três bandeiras”, que conclamava o povo à luta em favor da anistia ampla, geral e irrestrita, da abolição de todos os atos e leis de exceções, e da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte Livre e Soberana. Desde então o partido passou a apoiar os candidatos do MDB mais aguerridos no combate à ditadura.
O primeiro encontro – No final de 1976, com 20 anos, eu já havia concluído o curso científico, mas em vez de ir para uma faculdade, havia me casado, e meu primeiro filho tinha acabado de nascer. Trabalhava na Fundação Educacional de Anápolis, onde calculava a folha de pagamento das professoras e merendeiras da rede pública, dava aulas de francês na escola de idiomas Yázigi, e era vendedor do jornal Movimento, um semanário de combate ao regime militar, que tinha em seu conselho editorial intelectuais de várias tendências políticas, entre os quais, o deputado Alencar Furtado, do grupo autêntico do MDB, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, e o cantor Chico Buarque. Eu também era um dos organizadores do MDB Jovem de Anápolis. O Drummond, cujo nome de guerra para nós era Osvaldo, me fora apresentado uns dois anos antes por um militante da Ação Popular, Adelite Moreira dos Santos, funcionário do Banco do Brasil e ativo sindicalista. Um dia o Adelite nos chamou, a mim e a outro amigo e colega de trabalho de Anápolis, o Tauny Mendes, e nos disse que havia sido procurado por um contato do PCdoB, encarregado de organizar o partido em nossa cidade. Perguntou se topávamos conversar com ele. Topamos. A partir daí nossos encontros se tornaram frequentes.
Algumas de nossas reuniões tinham um ar bucólico e romântico. Num determinado sábado ou domingo, a gente comprava sanduíches e refrigerantes e íamos para debaixo da ponte de algum rio nas redondezas da cidade para discutir a conjuntura nacional, ler manifestos, denúncias de torturas ou capítulos de algum livro. Ali na beira da água era como se estivéssemos fazendo um piquenique. Mais de uma vez fomos parar embaixo da ponte do rio Corumbá, entre Abadiânia e Alexânia, na BR—060, a caminho de Brasília.
Volta e meia, o Drummond nos perguntava se tínhamos alguma notícia do Araguaia. É que um comerciante amigo nosso tinha parentes e negócios em Imperatriz, no Maranhão, e sempre nos relatava os comentários que corriam entre o povo da região do Bico do Papagaio sobre a guerrilha, dizimada em 1975. A maior parte das histórias aludiam à brutalidade dos militares, à coragem do Osvaldão ou às façanhas da Dina, dois dos guerrilheiros que se tornaram mitos.
O espírito e o corpo – Quando conheci o Drummond, eu já estava escolado em política, apesar de nunca ter participado do movimento estudantil, virtualmente banido de Anápolis, ainda mais depois que a cidade fora declarada, em 1973, “área de segurança nacional”, alegadamente por causa da implantação da Base Aérea dos Mirages, mas é claro que o motivo real foi a tradicional força oposicionista da cidade. José Batista Júnior, sucessor do prefeito Henrique Santillo, do MDB, teve o seu mandato cassado.
Eu também já transitava no existencialismo de Jean-Paul Sartre, graças às conversas que tinha com uma grande amiga, a Maura Helena de Oliveira Simões, uma brilhante socióloga formada na extinta Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, meio incapacitada por causa dos surtos psicóticos que sofria. Uma vez Maura me convidou para um encontro a ser realizado no auditório da clínica de seu psiquiatra, o Dr. Neiron de Souza e Silva. Lá chegando, encontrei uma roda formada por uma dúzia de médicos aguardando a palestra de um professor francês, em francês mesmo, sem tradução simultânea. O cara era especialista na fenomenologia de Edmund Husserl. Devo ter ficado perplexo, mas, para quem andava lendo Os Caminhos da Liberdade e O Ser e o Nada do Sartre, a matéria não devia ser de todo estranha.
A essa altura, há muito havia perdido a fé, depois de receber sólida formação católica na escola primária e no ginásio, sob a direção de freiras e padres franciscanos. O engraçado é que me convenci do materialismo (sem ainda ter estudado as piruetas da dialética hegeliana nem a operação ortopédica que dela fez o Marx) não porque tivesse tomado a lição de algum manual marxista, mas graças à tese de um químico americano, que, num livro enciclopédico sobre drogas, esclarecia que uma pessoa fica atordoada quando toma uma bebida alcoólica porque as moléculas do álcool interagem com as células do cérebro, bloqueando algumas de suas conexões. Se o espírito fosse separado do corpo, argumentava o químico, o álcool não lhe faria qualquer efeito. Troquei o dualismo espírito/corpo da fé cristã pelo monismo materialista mas jamais deixei de ser fã do São Francisco, para mim ainda hoje um modelo de comunista, hippie e inspirador do naturalismo.
Oh là là! – Depois de aprender francês num curso oferecido pelo Museu Histórico que eu havia ajudado a fundar em 1972, acabei substituindo o professor e aperfeiçoei a conversação na casa de algumas famílias de técnicos franceses da Base Aérea. Daí passei a ler a revista Les Temps Modernes, que a gente comprava na livraria Ao Livro Técnico da Rua das Farmácias, em Brasília. Nessa época, eu acalentava a ideia maluca de um dia me encontrar com o diretor da revista, o Sartre, e também com o presidente Mao Zedong e com o general vietcongue Van Giap, três heróis do meu panteão, com quem eu imaginava poder conversar em francês sem o auxílio de intérpretes. A Internacional eu aprendi a cantar no original com Catherine Boissinot, uma garota de Bordeaux, integrante da juventude comunista francesa, filha de um engenheiro da Base Aérea e que passava férias em Anápolis. Oh, mon dieu!
Conto essas intimidades para contextualizar a virada que significou na minha vida o convite para militar com o Partido Comunista do Brasil. Só com um pouquinho de exagero, tive a sensação de viver um personagem de um livro do Máximo Górki. Imaginem: com uma consciência social já bem adiantada, e sendo eu filho de uma lavadeira fã do Getúlio Vargas (até hoje!) e um padrasto que trabalhava numa fábrica de sapatos, o que mais eu podia almejar senão ser um soldado da Revolução?
Em casa a gente tinha um pôster gigante do meu padrasto de macacão, manejando uma fresadora. A foto tinha sido exposta no estande da fábrica de calçados Cosmos na Faiana, a Feira de Amostras da Indústria Anapolina, inaugurada em 72 ou 73. Depois do primeiro encontro com o Drummond, eu tratei de limpar a peça e a pendurei no ponto mais vistoso da sala de minha casa, com não disfarçado orgulho.
O pôster era fantástico, mas o meu padrasto não andava bem. Atingida pela crise, a fábrica em que ele trabalhava, de propriedade do grego Christos Papadopoulos, fechou. Meu padrasto foi obrigado a buscar emprego em Nova Hamburgo, no Rio Grande do Sul, e em Franca, São Paulo. Alcoólatra, nessas idas e vindas, ele acabou contraindo tuberculose e voltou a Anápolis para se tratar. Depois de algum tempo, ficou violento e passou a agredir a minha mãe. Um dia, num acesso de raiva, pinchou um gato numa parede. Depois da cena, chamei minha mãe, meu irmão e as duas irmãs que moravam com a gente e, sem titubear, decidimos expulsá-lo de casa. O pôster continuou pendurado na sala.
Peixe n'água – Muitos encontros com o Drummond eram feitos na minha casa, só nós dois. Minha mãe achava que ele era um professor. Meu entusiasmo comunista crescia. Uma vez me deu na cabeça escrever um artigo sobre o presidente Mao Zedong, discorrendo sobre a ideia dele de que um militante comunista deve viver entre o povo que nem um peixe n'água. Mostrei o artigo para o Drummond. Ele leu o texto rapidamente, acho que riu, mas não me lembro de seus comentários. No encontro seguinte, ele me trouxe uma biografia do presidente, séria, não hagiográfica, do historiador chinês Jérôme Ch'en, da Universidade de Leeds, Inglaterra, publicada em 1968 pela editora Mercure de France. Naquela biografia, que guardo até hoje, aprendi que Mao, ainda jovem, tinha flertado com as ideias anarquistas de Bakunin e Kropotkin antes de aderir ao marxismo. Com o Drummond eu logo aprenderia que o caminho do Brasil rumo ao socialismo jamais poderia ser igual ao da República Popular da China. Cada país faz a sua própria marcha, ensinava ele. É preciso estudar a realidade concreta do País para mudá-la. É possível que aqui tenha germinado a minha vocação de jornalista.
A memória que guardo do Drummond é a de um sujeito de mente aberta, carinhoso (certa vez presenteou meu irmão, o Sérgio, com uma gaitinha), bem informado e sintonizado nos debates intelectuais da época. Num encontro em Goiânia, provavelmente ocorrido no segundo semestre de 75, ele deu notícia do debate ainda muito acirrado em torno das teses de Ler o Capital, um livro coletivo capitaneado pelo filósofo francês Louis Althusser dez anos antes. Acho até que o Drummond fez uma piada sobre o conceito da “prática teórica”, parecida com a daquele físico teórico barrigudo zoado pela mãe por não fazer exercícios.
Em meados de 1976, o Drummond me deu de presente a peça O Rinoceronte, de Eugène Ionesco, que acabava de ser lançada na coleção Teatro Vivo da Abril Cultural. Em chave irônica, pensei com os meus botões: “Como é que um comunista sério presenteia um jovem recruta com a obra de um dramaturgo anticomunista 'insólito' como o Ionesco, que os puristas devem considerar o cúmulo da decadência da arte burguesa”? Matutando hoje, chego à conclusão de que o Drummond desafiava a caretice dos comunistas de então, apostando fichas na inteligência de um garoto que devia considerar esperto. Uma evidência disso foi o comentário que ele me fez nessa mesma época a propósito de uma entrevista do ator Juca de Oliveira, integrante do elenco da novela surrealista Saramandaia, de Dias Gomes, lançada em maio de 76 pela TV Globo. Juca fazia o papel do personagem João Gibão, cuja corcunda escondia um estupendo par de asas. “Essa novela é interessante porque educa os sentimentos artísticos do povo. Todo mundo sabe distinguir a fantasia da realidade, e diferencia as ações do ator na novela de suas ações na vida real”, ponderou o Drummond. Eu logo cogitei que ele devia estar aludindo ao efeito de distanciamento do Brecht, em oposição à catarse aristotélica, quer dizer, a identificação da plateia com o herói da peça. Dias Gomes, um comunista, era brechtiano desde os anos 60, quando trabalhou com Augusto Boal, um teórico da dramaturgia popular crítica e libertadora.
O alerta do general – Distinguir a realidade da fantasia é, por suposto, a primeira obrigação de um revolucionário. E a realidade no final de 1976 é que a ditadura estava capenga, como o próprio ditador de plantão, o general Ernesto Geisel, já havia reconhecido na virada do ano de 1974, após a derrota do partido oficial na disputa pelo Senado. Em cadeia nacional de rádio e televisão, Geisel havia dito que a Arena tinha se desgastado “com o largo período de confortável, mas emoliente posição majoritária” e que “as consequências estão agora à vista”. “Sirva isso de alerta”, concluiu. Diante desse aviso, cabia a nós acelerar a organização do partido e, com os parcos recursos disponíveis, fazer tudo o que pudéssemos para desgastar ainda mais o regime. Apoiar a ala progressista do MDB era o mínimo que podíamos fazer.
Uma das tarefas de nossa pequena célula anapolina era fazer cópias de documentos que o Drummond nos trazia. Essa atribuição cabia principalmente a mim, datilógrafo experiente, que sempre teclou com os dez dedos. Usando um papel fininho, papel-seda, quase transparente, a gente conseguia fazer cinco ou seis cópias por vez. Eu copiava artigos do jornal A Classe Operária e muitos outros materiais. Certa vez, reproduzi trechos do Livro Negro da Ditadura, publicado na clandestinidade pela Ação Popular Marxista-Leninista em 1972 para denunciar os crimes do regime militar. Assim que as cópias ficavam prontas, o Drummond as buscava em Anápolis, ou eu as levava para ele em Goiânia, menos de 60 quilômetros adiante, de ônibus. A recomendação de segurança para esse tipo de operação era a seguinte: “Nunca fique com o pacote dos documentos. Bote-o no bagageiro algumas poltronas à frente da sua, de maneira que fique à vista, para o seu controle. Se houver uma batida policial, será difícil que liguem o embrulho a você”.
Um dia, resolvemos investir em tecnologia… e compramos um mimeógrafo a álcool. Um dos trabalhos de que mais me orgulho foi ter produzido 150 cópias do “documento das três bandeiras”, provavelmente em maio ou junho de 1975. Na hora de bater o estêncil – a matriz com a tinta de reprodução -, o Adelite resolveu sofisticar: em vez de um, pediu que eu datilografasse dois estênceis, um com o texto, em cor azul, e o outro, com os títulos, em cor vermelha. O documento saiu tinindo de bonito. A primeira fase, da impressão, foi fácil. A segunda, da distribuição, é que seria complicada. Como distribuir 150 cópias de um documento do Partido Comunista em Anápolis, área de segurança nacional, cheia de milicos da Aeronáutica e de agentes da Polícia Federal? O primeiro nome da nossa lista foi o combativo deputado estadual Henrique Santillo, um neo-autêntico do MDB, que havia sido prefeito da cidade entre 1969 e 1972. Santillo era nosso amigo, dera todo o apoio da prefeitura para a fundação do Museu Histórico, e nós havíamos participado ativamente de sua campanha eleitoral em 1974, mas não confiávamos nele totalmente. Como entregar-lhe, pessoalmente, aquele documento “batata quente”, nos entregando juntos? Botamos a Mensagem aos Brasileiros num envelope e, de noite, o enfiamos debaixo da porta de entrada da casa dele. Fizemos isso com um monte de conhecidos. Para os amigos que moravam em outras cidades, e para alguns parlamentares em Brasília e Goiânia, mandamos o documento pelo correio. Um desses amigos, o Chico, mestrando de Ciências Sociais em Belo Horizonte, recebeu a Mensagem, mostrou-a a alguns colegas, e depois nos disse que, desde então, passou a ser muito mais respeitado na faculdade.
Guardar o mimeógrafo em casa era perigoso, mas o Drummond já tinha bolado uma solução. Concluídos os trabalhos de impressão, a gente embalava o aparelho, ia para a estação ferroviária, e despachava a caixa para outra cidade – Catalão, Ipameri ou Pires do Rio. Algumas semanas depois, o Drummond viajava até lá, resgatava o trambolho no depósito da estação e o redespachava. Era assim que a gente guardava o nosso cachacinha, em trânsito na estrada de ferro.
Contrafação – Se viver é muito perigoso, viver como comunista naquela época era muito mais perigoso ainda. Era preciso seguir as regras da estrita clandestinidade, sem vacilação, e é por isso que o PCdoB organizava células estanques, sem qualquer contato umas com as outras. Assumir uma outra identidade era também um recurso valioso de segurança. Por isso, mais de uma vez, surrupiei dos arquivos da Fundação Educacional algumas certidões de nascimento originais, devidamente substituídas por xerox, e as repassei ao Drummond. Depois da alteração dos dados, esses documentos serviam para que companheiros do partido pudessem obter novas carteiras de identidade ou carteiras de trabalho e, assim, sair da clandestinidade. Essa também foi uma das tarefas de que me orgulho, a despeito de sua evidente, ahn!, ilegalidade…
Comecei esse depoimento dizendo que vi o Drummond pela última vez quando estava acompanhando a apuração dos resultados das eleições municipais de 1976. Havíamos marcado um novo encontro para antes do final do ano, e tinha ficado acertado que ele teria um encontro com um amigo nosso, o professor Sílvio Costa, que depois se tornaria um dos dirigentes do partido em Goiânia. No dia 17 de dezembro, porém, fomos surpreendidos com a notícia do Massacre da Lapa. Vimos nos jornais e na revista Veja as fotos do Pedro Pomar, Ângelo Arroyo, Haroldo Lima e do Aldo Arantes, que a gente considerava um de nossos heróis, filho que é de Anápolis. Não vimos qualquer foto do Drummond. Um alívio! Também nada nos informou sobre o paradeiro de nosso companheiro a lista dos nomes dos mortos e dos presos. A gente não sabia o seu nome verdadeiro (para nós ele era o Osvaldo) e, por óbvio, não tínhamos a informação de que ele fizesse parte do Comitê Central do PCdoB. Ficamos então aguardando que ele nos procurasse ou desse notícia nos dias seguintes.
João Batista Franco Drummond
O anúncio do jornal – Passaram-se duas semanas, o ano virou e nenhum sinal dele. Passou a primeira semana de janeiro, passou a segunda, e nenhum sinal dele. As únicas notícias que tínhamos sobre o partido nos chegavam pelos boletins da Rádio Tirana, da Albânia, através do robusto Transglobe da Philco que eu havia comprado no início do ano. Pela rádio recebíamos a instrução de ficarmos quietos, de fingir que estávamos mortos, de não tentar fazer contatos com nenhum outro militante do partido. Com o passar do tempo, os boletins começaram a se repetir. O partido voltava a um estágio anterior, da mais completa clandestinidade. Foi então que, no dia 18 de janeiro, O Popular, de Goiânia, publicou um anúncio intitulado “Desaparecimento”, com uma foto do Drummond e um nome na legenda: José Edilson de Souza. O texto do anúncio dizia o seguinte: “Está desaparecido de sua residência, desde dezembro do ano passado, José Edilson de Souza. Ele tem aproximadamente 30 anos de idade, cabelo e olhos castanhos, 1,73 de altura. Trajava na ocasião calça azul US-TOP e camisa xadrez. Sua família, aflita, está solicitando a quem souber de seu paradeiro informar na 11ª Avenida, nº 677, na Vila Nova. O mesmo anúncio foi publicado no Correio Braziliense, não me lembro se no mesmo dia ou dias depois. Imediatamente, procurei o Tauny e o Adelite para discutir o significado daquele anúncio, que nos chocava mas também nos dava esperanças.
Na verdade, tudo indicava que se tratava de uma armadilha da polícia. Afinal, uma família não diz que um parente tem “aproxidamente” 30 anos. É claro que indicaria a idade do desaparecido com precisão. Mas, e se houvesse mesmo um parente agoniado? Essa dúvida e um monte de outras nos afligiram durante dias, até que eu tive uma ideia: e se eu desse um jeito de ir “casualmente” até o endereço transcrito no anúncio? E se eu fosse até lá disfarçado de vendedor? Discutimos um pouco mais, e decidimos que eu faria isso mesmo.
Comecei a me preparar, pesquisando comerciais publicados no Popular, até que achei uma oportunidade macabra, mas foi essa mesma que escolhi. Eu me disfarçaria de vendedor de um plano de saúde cujo principal produto era a cobertura das despesas do funeral do segurado. Para me habilitar tive que fazer um curso que durou uma manhã inteira numa sala localizada na Avenida Goiás, nas proximidades da Praça do Bandeirante. Ali recebi instruções de como falar com as pessoas, como negociar as prestações do plano etc. No final, recebi uma carteirinha de representante comercial, e uma pasta contendo tabelas de preços, um talão de recibos e um álbum de fotos de caixões, simples, medianos e até luxuosos. Tétrico! Tomei um lanche, respirei fundo e rumei para as imediações do endereço indicado no anúncio do Popular, na Vila Nova. Comecei a entrar de casa em casa, com jeito, tateando. Eu argumentava que a morte sempre é triste, mas inevitável. E que seria melhor que a gente se preparasse para ela com certa antecedência, sob pena de pegar a família de surpresa e desfalcar as suas economias com os custos do funeral. Na época eu era magro, usava cabelo comprido que nem hippie, e tinha um par de óculos redondos, parecidos com os do Trotsky ou do John Lennon. Parece que aquela aparência não oferecia perigo, e aquele papo de vendedor do outro mundo não deve ter ofendido ninguém.
Comércio macabro – Meia dúzia de visitas depois eu já estava craque no discurso, mas era preciso ter ainda paciência. Continuei a andar de porta em porta. Depois de bater perna por mais uma ou duas horas, alcancei a praça onde estava o meu alvo. Continuei a abordagem passo a passo, casa por casa, até chegar no número 677. Era uma residência coletiva. Na frente, uma casa maior, circundada por vários barracões. Bati na porta da casa principal e fui atendido por um casal de velhinhos. Ofereci o plano, recebi um não com os constrangimentos de praxe, e daí perguntei se não podia falar com os vizinhos. Parece que eram todos da mesma família, filhas e noras que cuidavam das crianças. Não me lembro de nenhum homem além do velhinho. Depois de conversar com todo mundo, perguntei se não havia mais alguém da família com quem eu pudesse conversar, mesmo que fosse no dia seguinte. Foi então que apareceu a informação que eu buscava: havia, sim, um outro filho do casal de velhinhos, mas ele só chegaria à noite. O indivíduo era funcionário da Secretaria de Segurança Pública, me disseram. Disfarcei o susto e me despedi, saindo dali com cautela. Respirei fundo e resolvi continuar a bater na porta de mais algumas casas da vizinhança, antes de cair fora e voltar para o escritório da empresa de seguros para devolver o material promocional como ficara combinado. Os meus esforços de vendedor naquela tarde não tiveram resultado comercial. Mas eu havia obtido uma informação de dar medo. Voltei para Anápolis e contei a escabrosa novidade para o Adelite e o Tauny. Decidimos seguir a orientação do partido de nos fingir de mortos.
Meses depois da tragédia da Lapa, continuamos no limbo, sem qualquer informação sobre o destino do Drummond. Não tínhamos contatos em São Paulo ou Belo Horizonte que pudessem nos dar notícias. Uma vez, uma conhecida comentou que “um rapaz do PCdoB que havia sido morto em São Paulo” tinha trabalhado como fotógrafo no jornal Cinco de Março, de Goiânia. Não fomos checar. Seguimos nossas vidas.
O Tauny continuou a trabalhar na Prefeitura Municipal. Exatamente no dia 31 de março de 1977, eu fui demitido pessoalmente pelo diretor da Fundação Educacional, o ex-prefeito Jonas Duarte, da Arena, depois que alguém lhe contou que eu andava “fazendo campanha política”, ao distribuir às professoras e merendeiras cartões de Feliz Aniversário e Boas Festas que o deputado Henrique Santillo costumava mandar pelos correios. “Eu sei que um dia vocês vão implantar o comunismo no Brasil, mas até lá eu estarei morto”, me disse o ex-prefeito, aos berros, antes de dizer que eu estava fora do serviço público. Seis meses depois, gastando os últimos trocados do FGTS, desisti do projeto de me mudar para Itaguaru, no interior de Goiás, para ajudar na organização do movimento sindical dos trabalhadores rurais. Rumei para Brasília, onde assumi a direção das vendas da sucursal do jornal Movimento, e onde recebi as primeiras lições de jornalismo do brilhante repórter Teodomiro Braga, chefe da redação.
Uma das minhas tarefas era datilografar os artigos do diretor da sucursal, o aguerrido ex-deputado baiano Chico Pinto, que havia sido preso em 1974 por denunciar os crimes do general Augusto Pinochet, exatamente na véspera da posse do general Geisel. Chico Pinto, que foi um dos articuladores do lançamento do Movimento, enquanto ainda estava preso no Pelotão de Investigações Criminais do Exército, em Brasília, virava a noite escrevendo seus artigos à mão, numa letra miudinha difícil de decifrar. Antes de levar as matérias, as fotos e a ilustrações do jornal para o departamento de censura da Polícia Federal, eu tinha que passar no apartamento do Chico, na SQN 402, para apanhar as folhas manuscritas e voltar para a sucursal para datilografá-las.
Vida que segue – Antes de mim, o Adelite já havia se mudado para Brasília, onde, em parceria com outra companheira de Anápolis, também professora e bancária, Elizabeth Alves Silva, ajudou a fundar o Sindicato dos Professores, na época ainda uma associação. Em 1980, os dois ajudaram a tomar o Sindicato dos Bancários da direita, quando se elegeu para a presidência da entidade o sociólogo Augusto Carvalho, então militante do Partido Comunista Brasileiro, hoje deputado federal pelo Solidariedade.
Adelite participou da reorganização do PCdoB em Brasília enquanto eu segui a carreira de jornalista. Mesmo sem voltar a militar “de carteirinha”, continuei a fazer política na chamada franja do partido. Em 79, passei a assessorar, esporadicamente, o deputado operário comunista Aurélio Peres, eleito pelo MDB em 1978, e reeleito em 1982. A gente compunha o boletim de prestação de contas do mandato, estampando na primeira página um editorial assinado pelo deputado, que se destacara nacionalmente como líder do Movimento Contra a Carestia em São Paulo. Quase sempre à esquerda da linha geral do partido, o jornalzinho não economizava críticas às políticas do presidente José Sarney, que, de “tudo pelo social”, só tinham o nome. Mais de uma vez encontrei no gabinete do Aurélio o presidente do PCdoB, João Amazonas. Ele sempre me tratava com simpatia enquanto folheava o boletim. Parece que achava graça.
Em 1982, também participei, junto com o Adelite e a Beth, da campanha doe Aldo Arantes a uma vaga na Câmara dos Deputados, pelo PMDB de Goiás. Um dos resultados dessa campanha, em que o Aldo conquistou a primeira suplência, foi a eleição do prefeito de uma cidade do Entorno do Distrito Federal, Brasilinha, o Edenval Vaz. Durante a campanha, Adelite descobriu que estava com câncer em estágio avançado; morreu logo depois.
Por incrível que pareça, eu só tive plena certeza do assassinato do Drummond quando, ao cobrir uma manifestação dos movimentos da anistia no Salão Verde da Câmara dos Deputados, provavelmente no segundo semestre de 1978, vi um grande cartaz com a sua fotografia, entre a de outros militantes tombados na luta contra a ditadura. Só nessa ocasião a ficha caiu, e a raiva me fez mal durante dias. Em março daquele ano havia nascido o meu segundo filho, e ele foi registrado com o nome Osvaldo.
Um dos moleques que participavam conosco das atividades do MDB Jovem de Anápolis, o Egmar José, tornou-se um grande advogado e cumpriu papel importante na Comissão da Verdade. Foi justamente o Egmar que obrigou o Estado brasileiro a admitir, pela primeira vez, de papel passado, em 2014, que um militante político havia sido morto sob tortura enquanto estava sob a sua guarda, no DOI-Codi de São Paulo. O nome do militante: João Batista Franco Drummond, herói do povo brasileiro, meu professor de comunismo!
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