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quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

A crise do macho branco adulto no comando, por Sérgio Saraiva - Jornal GGN


A crise do macho branco adulto no comando, por Sérgio Saraiva
SERGIO SARAIVA
TER, 03/01/2017 - 18:10

O macho branco adulto é um ser em crise e perigoso. Frustrado e inseguro e sob um experimento de manipulação social que só encontra paralelo no nazismo, a violência é sua resposta.



por Sérgio Saraiva

“Enquanto os homens exercem seus podres poderes, índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes fazem o carnaval”.

São versos de Caetano Veloso para a música “Podres Poderes”. A composição é de 1984. O que talvez explique a citação a padres fazendo o carnaval – vivíamos os tempos da Teologia da Libertação, ainda na Ditadura e antes da Constituição Cidadã de 88.

A sociedade da descriminação

Há uma clara dualidade e antagonismo nesses versos: homens se contrapondo a índios e padres e bichas e negros e mulheres e adolescentes. Os podres poderes se contrapondo ao Carnaval. Claramente também se nota não se tratar de qualquer homem e sim do homem branco, adulto e heterossexual.

Há duas coisas que sempre me incomodaram nesses versos.

A primeira é que Caetano atribui todos os podres poderes a uma minoria: o homem branco, adulto e heterossexual. Mas como negar que é a representação do poder. E de um poder conservador e reacionário como fica explicito nos demais versos da canção.

“Será que nunca faremos senão confirmar a incompetência da América católica
que sempre precisará de ridículos tiranos?”.

Caetano não trata especificamente da questão social, mas se lembrarmos que no Brasil a riqueza tem cor e a cor dela é branca, poderíamos reduzir ainda mais esse círculo de poder. Homem, branco, adulto, heterossexual e de classe média acima.

A segunda coisa que me incomoda nos versos de Caetano é a sua generalização.

Somos a sociedade da descriminação.

Negros discriminam mulheres e homossexuais e mulheres brancas discriminam negros e talvez discriminam mais ainda às mulheres negras. Homossexuais discriminam pobres. Adultos desrespeitam crianças e adolescentes a ponto de ser necessário um estatuto para protege-los. Estatuto que é apontado como a causa da nossa criminalidade justamente pelos adultos.

Sulistas e sudestinos discriminam nordestinos… e por aí vai.

Somos a sociedade da discriminação e ela vai além do homem branco, adulto e heterossexual. Mas o tem como referencial.

E aqui a causa do incômodo: a discriminação contamina as vítimas da discriminação, que também discriminam de alguma forma, o que acaba por justificar a discriminação através um círculo vicioso.

Há que se estudar tal contaminação, já que me parece inescapável que ela contribui para que um grupo tão minoritário – o macho branco adulto detenha o poder.

O macho adulto branco sempre no comando e em crise

Tais divagações voltaram-me à mente por causa de duas tragédias acontecidas no final de 2016 onde estava novamente presente o estereótipo do homem branco, adulto, heterossexual e de classe média.

Em novembro, Goiânia – GO, um homem de 60 anos matou o filho de 20 anos. Motivo do assassinato: o pai discordava a posição política do filho. E mais o quê? Quando pais e filhos não tiveram visões diferentes de mundo? E não somo uma sociedade de filicidas. Um caso isolado de um psicopata?

Na noite de fim de ano, em Campina – SP, um homem de 46 anos matou 12 pessoas da família da ex-esposa. Incluindo a ex-esposa e o filho. Motivo dos assassinatos: disputava a guarda do filho com a ex-esposa e havia perdido na Justiça. Deixou uma carta explicando o ato onde misturava misoginia e ódio político característico da extrema-direita. E mais o quê? Separações podem ou não ser traumáticas, mas não acabam em chacinas. Mais um caso isolado de outro psicopata?

Esse mais “o quê” é a chave para entendermos a crise pela qual passa o “macho adulto branco”.

Ocorre que o macho adulto branco sempre no comando é só uma representação. E cada vez menos válida.

Após a revolução sexual dos anos sessenta do século passado que deu às mulheres o poder de decisão sobre sua sexualidade e capacidade reprodutiva; após a tecnologia dispensar a força física nas atividades de produção e privilegiar a capacidade intelectual; após a inserção das mulheres nas escolas e no mercado de trabalho e até nas forças armadas e de segurança interna que deram às mulheres independência econômica, o macho adulto branco deixou de ser importante por si só para manutenção da sociedade. Tornou-se inclusive dispensável.

Após os movimentos de ação afirmativa de negros e homossexuais, o macho adulto branco está deixando de ser a referência do “normal”. Passou a ter de pensar até nas anedotas com que animava suas rodas de amigos.

Mas o macho branco adulto atual – aquele com mais de 35 anos – ainda se espelha muito na figura do seus pais. E esses ainda refletiam a sociedade anterior à revolução sexual e social no Brasil – “um mundo onde cada um sabia o seu lugar”.

O macho branco adulto atual é um ser em crise. Anacrônico e deslocado. Rebaixado em seus status social. É um frustrado e um inseguro que se transformou em poço de mágoas pronto a explodir. Bastava algo que justificasse sua revolta contra “tudo isso que está aí”.

E essa justificativa veio através da instrumentalização da sua frustração na forma do anti-esquerdismo.

Por que o anti-esquerdismo?

Porque foi a esquerda que modernamente encampou as lutas das mulheres, dos homossexuais, dos negros e sua representação como pobres.

Fora Dilma

Não é difícil perceber o porquê do ódio associado aos governos Dilma.

Mas é interessante notar-se que o macho adulto branco foi também arregimentado.

Quando da domingueiras que pediam o impeachment, a Folha traçou o perfil dos participantes: 57% eram homens – na população são 48,6% – 77% tinham mais de 36 anos e 40% tinham mais de 50 anos; 63% tinham renda de mais de 5 salários mínimo e 13% tinham renda acima de 20 salários mínimos e 77% se declararam brancos.

Alguma dúvida do grau de ódio e intolerância exercidos em tais domingueiras?



Tais domingueiras eram eventos de massa com marketing e público alvo bem definidos. E recurso financeiros para planejamento, divulgação e realização.

O estrato da população alvo dessas ações – o macho adulto branco – foi e continua sendo submetido a um experimento de dominação e manipulação cultural e ideológica que só encontra paralelo no nazismo.

Foi lhe dado um inimigo que seja responsabilizado por todos os seus fracassos e frustrações. E o ódio e intolerância decorrentes foram devidamente justificados. Seriam resultados da revolta dos “homens de bem” contra uma sociedade corrupta. O autoengano é uma poderosa ferramenta de persuasão e convencimento.

Pouco importa se a realidade o negue. Aceitar a realidade seria aceitar seu novo papel na sociedade e este é menor, na sua visão.

Seus heróis não se submetem a nada- são o próprio poder salvador e conservador.



Sob tal nível de pressão, o macho branco adulto é um ser em crise. Rebaixado em seu status social, frustrado e inseguro – mas convencido que sua missão é salvar a nação – a violência foi sua reposta.

Inicialmente a violência praticada contra indivíduos associados com a esquerda – foi saudado como alguém com consciência política. Agora a violência praticada contra a própria família. Essa não encontra saudações – mas uma hipócrita compreensão.

O macho branco adulto é mais um dos problemas que esta Nação tem de resolver em seu processo civilizatório.



PS: Oficina de Concertos Gerais e Poesia matando um leão a cada dia.

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