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sábado, 2 de janeiro de 2021

Renato Rabelo: Camarada Amazonas, presente!


Foto: reprodução

Uma breve memória do pensamento e do legado de João Amazonas

Quase uma constância, inúmeras vezes visitava o camarada João Amazonas no primeiro dia do ano – data do seu nascimento, no ano de 1912. Eu era acompanhado muitas vezes por Conchita (minha esposa e camarada) e recebido por João e Edíria Carneiro, sua companheira até a morte, sempre muito simples, afável e afetuosa. Nos serviam chá e biscoitos e a conversa rolava geralmente durante mais de três horas com divagações, atualizações dos mais variados assuntos, rememorações, até mesmo se desenhavam sortidas abstrações, em um ambiente terno, de prazer e confiança mútua.

Por Renato Rabelo*

Tive a ventura de conviver com o camarada João desde maio de 1973, no primeiro encontro, celebrado entre João Amazonas e Pedro Pomar, pelo PCdoB, e Haroldo Lima e eu, pela AP num “aparelho” clandestino do Partido, em plena ditadura militar, no curso da incorporação da Ação Popular Marxista-Leninista ao Partido Comunista do Brasil. A partir desse desenlace logo me dediquei ao lado de João na formação de uma retaguarda de apoio à resistência armada no Araguaia. Logo após — em novas circunstâncias em função da Queda da Lapa, onde vários camaradas dirigentes foram assassinados pela Ditadura Militar nos impedindo de retornar ao país já que estávamos em missão no exterior — junto com João Amazonas e Diógenes Arruda vivemos e atuamos na condição de exilados em Paris, França, durante quase dois anos.

Na volta ao Brasil, pós-anistia, no final de 1979, se desenrola um novo ciclo de existência do PCdoB, começando com a paciente reestruturação do Partido, redemocratização e início do maior período de legalidade da história do Partido Comunista no Brasil. João Amazonas não viveu para ver a vitória da campanha presidencial consumada no final de 2002, com o que, desde os primórdios a partir de 1989, ele contribuiu substancialmente para esse resultado.

Minha vivência com Amazonas

Tornou-se para mim uma fortuna essa larga vivência de quase 30 anos, ao lado e na luta com esse eminente dirigente comunista, arguto elaborador político e teórico, ideólogo e construtor protagonista do Partido Comunista desde a década de 1940. Essa trajetória foi marcante na minha formação política, teórica, metodológica, ideológica, descortinando para mim novos horizontes, forjando as condições necessárias para galgar o maior desafio da minha experiência política e humana: assumir a presidência de um partido lastreado de insignes dirigentes, com um rastro de heróis e mártires, na comunhão do grande desiderato histórico de abrir a senda para edificação de uma nova sociedade pós-capitalista, socialista, até a “utopia” marxista, o comunismo. Estes fatos deixaram em mim não a resignação, mas a convicção:  O tempo apreendido com o pensamento avançado, levado à sinergia da força motriz de grandes contingentes dos que trabalham, ainda dará conta à história de profundas transformações, disruptivas, revolucionárias.

A prática e o pensamento de João Amazonas organizaram-me a lógica da procura da compreensão do todo, de uma situação concreta – um simples acontecimento, ou uma época. Assim intentar levar a cabo um conhecimento profundo, sem apenas reduzi-lo à aparência do imediatismo, contextualizando-o num longo prazo. Ou seja, a tentativa da elaboração que possa realizar a sistematização histórica e teórica. Para João tudo vindo do humano, da história, do acontecido concreto ou imaginário, deve passar pelo nosso olhar e crivo, transitando do espontâneo ao consciente, a fim de que possa permitir uma resposta, uma solução, um discernimento lógico objetivo.

O rico e extenso legado de Amazonas

A práxis constante de longa atividade política nas diversas circunstâncias de tempo e lugar, do seu incessante estudo, permitiu a João, de forma persistente, colocar o Partido no curso dos acontecimentos políticos, permitindo então, uma prática que fosse a base para definições sistêmicas, estratégicas, táticas e programáticas. Nesse sentido, o pensamento de Lênin tinha-lhe sido uma referência maior. Ele conceituava a última grande obra do líder da Revolução de Outubro, Esquerdismo, doença infantil do comunismo (1920), como uma “verdadeira enciclopédia da estratégia e da tática”. E afirmava: “É uma obra tão densa, baseada em gigantesca experiência revolucionária que, em dezenas de leituras feitas, sempre se descobre algo novo”. Tornou-se clássica sua caracterização de que a tática deve ser “ampla, combativa e flexível” e, de que, a luta dos trabalhadores para conseguir êxito deve seguir uma relação dialética: “ampliar para radicalizar, radicalizar para ampliar”.  Assim, querer radicalizar sem acumular e ampliar forças políticas e sociais, nos leva ao isolamento e à derrota. E já diante da radicalização é preciso sempre mais ampliação de forças para avançar.

João Amazonas na sua rica atuação prática adquiriu agudo censo tático em função do objetivo estratégico e, deste, não se afastar. Em correta relação entre estratégia e tática. Ele nunca teve ilusões do papel antinacional e antidemocrático das classes dominantes conservadoras no Brasil. E nunca perdeu de vista o alvo de investida principal, o adversário a ser isolado e derrotado. Na campanha pelas Diretas Já (1984-1985), a militância comunista participou de forma consequente e intensa. Quando a Emenda que devolvia aos brasileiros o direito de votar para presidente da República foi derrotada no Congresso Nacional, com a indicação de Amazonas, o PCdoB defendeu naquele momento, que o foco da luta se transferia para o próprio Colégio Eleitoral, instituição do regime militar. Este tornava-se o meio viável naquela situação dada, porquanto podia formar pela primeira vez uma maioria no dito Colégio, pelo qual se poderia vencer a ditadura, abrindo o caminho para conquistas maiores. Manter nossa ausência no Colégio Eleitoral ainda permitiria a sobrevida do regime ditatorial.

E adiante, após 3 derrotas consecutivas de Lula à presidência da República, a proposta defendida por Amazonas de que a esquerda sozinha, dificilmente ganharia as eleições presidenciais e, menos ainda, poderia governar o país, em face da estrutura da correlação de forças existente, demonstrava ser correta. Disso e das próprias lições da derrota levaram o PT estender a aliança, permitindo o alcance da primeira vitória de Lula, em 2002. O núcleo da aliança foi formado com o Partido Liberal contando com José Alencar como candidato a vice-presidente, e o segundo turno eleitoral garantiu a vitória final, com aliança mais alargada ao centro-direita do espectro político de então. De forma indubitável, explícita ou implícita, três chaves conceituais do arsenal leninista, assumidas na orientação do PCdoB, instruídas por Amazonas, justificam e fundamentam a aplicação dessas orientações adotadas: “análise concreta da situação concreta”; “a essência da tática é a correlação de forças”. “Para o êxito da luta revolucionária é imperativo a celebração das alianças”. O que conta é a influência que o aliado tenha sobre um setor determinado da sociedade, ou melhor: o seu peso quanto a possibilidade de desequilibrar a correlação de forças existente. Podendo ser um aliado “temporário” e “vacilante”.

Amazonas também deixou importante contribuição teórica, na qual se empenhou vivamente, acerca do período de extinção do socialismo na URSS e no Leste europeu. Sob sua direção, a realização do significativo VIII Congresso do PCdoB, em 1992, trouxe à luz do dia o pano de fundo da débâcle: sem o desenvolvimento da teoria, os problemas estruturais postos pelo desafio de construir o socialismo não puderam ser enfrentados de forma condizente com a exigência histórica daquele período.

E foi adiante, o seu estudo desenvolve a elaboração teórica da fase objetiva de transição do capitalismo ao socialismo, no seu brilhante trabalho, Capitalismo de Estado na transição para o socialismo: notável contribuição de Lênin à teoria revolucionária do progresso social. A fundamentação central defendida por João Amazonas, nesta obra, foi um começo que permitiu o conhecimento mais consistente, antes “adormecido”, do processo contraditório na formação econômico-social, sob a condução do novo poder estatal, com etapas determinadas, na transição socialista. Hoje, podemos compreender que foi uma visão prenunciadora de Amazonas, refletida no estudo e pesquisa que estamos realizando na atualidade, que enfoca o conceito de “nova formação econômico-social”, e os seus fundamentos de uma “ressignificação da transição socialista”, no contexto da nova luta do socialismo contemporâneo na China, Vietnã e Cuba.

É extenso e rico o legado político e teórico deixado por João Amazonas. Muito poderia ainda destacar por exemplo, a respeito da sua clarividência sobre o papel e o lugar da organização partidária dos comunistas na luta política e ideológica, instrumento insubstituível para a conquista do poder político estatal e o êxito revolucionário. A consequência dessa concepção traduzida em como cuidar sempre e melhor do partido – atenção incessante pronunciada e estimulada por ele. A sua luta e seu desvelo pela aplicação do Programa do Partido. O papel crescente das mulheres e da juventude na formação da força motriz empenhada nas profundas transformações sociais e a relação primordial do Partido com as massas trabalhadoras, a prioridade da formação marxista-leninista dos quadros e militantes … É extensa a lista da sua dedicação e contribuição à construção do Partido.

Neste dia em que comemoramos o nascimento de João Amazonas enaltecemos a sua gloriosa e saudosa memória junto com nossa militância e nosso Partido.

*Renato Rabelo é presidente da Fundação Maurício Grabois e ex-presidente do PCdoB

(PL)

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