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Marx e Engels foram, no século XIX, os pensadores que mais contribuíram para o desvendamento das verdadeiras origens da opressão da mulher e, com isso, criaram as condições para que fossem construídos os caminhos que conduziriam à sua libertação. Um dos marcos deste processo foi a publicação, em 1884, do livro A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado.Foto: Arte: Ruth Kjaer
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Esta obra, escrita por Engels, teve por base uma série de anotações deixadas pelo próprio Marx, que havia falecido no ano anterior à sua publicação. Por isso, segundo seu autor, o livro foi “a execução de um testamento” e concluiu: “o meu trabalho só debilmente pode substituir aquele que o meu falecido amigo não chegou a escrever” (ENGELS, 1974:1-2). Modéstia à parte, o livro se tornou um êxito de venda – atingindo quatro edições em menos de sete anos – e foi traduzido em várias línguas. Até hoje continua sendo uma referência obrigatória para todos aqueles que querem entender melhor a formação da família e do Estado modernos.
Trataremos neste pequeno artigo apenas dos aspectos referentes à história da família e, conseqüentemente, da história da derrota da mulher no seu interior e os caminhos apontados por Engels (e Marx) para superação desta opressão milenar.
A “ciência da família” estava dando os seus primeiros passos quando os dois pensadores socialistas alemães se interessaram por ela. A obra pioneira neste campo havia sido O direito Materno de Bachofen, publicada em 1861. Nela o autor expõe, pela primeira vez e para escândalo geral, a tese de que nas sociedades primitivas, em certo período, teria predominado o matriarcado – ou seja, havia predominado a ascendência social e política das mulheres sobre os homens.
Engels, no prefácio de 1891, referindo-se a descoberta de Bachofen, escreveu: “primitivamente não se podia contar a descendência senão por uma linha feminina (...) essa situação primitiva das mães, como os únicos genitores certos de seus filhos, lhes assegurou (...) a posição social mais elevada que tiveram (...), Bachofen não enunciou esses princípios com tanta clareza (...) mas, o simples fato de tê-los demonstrado, em 1861, tinha o significado de uma revolução” (ENGELS, 1974:10).
Até a década de sessenta (do século XIX), continuou, “não se poderia sequer pensar em uma história da família. As ciências históricas ainda se achavam, nesse domínio, sob a influência dos Cinco Livros de Moisés. A forma patriarcal da família, pintada nesses cinco livros como maior riqueza de minúcias do que em qualquer outro lugar, não somente era admitida, sem reservas, como a mais antiga, como também se identificava – descontando a poligamia – com a família burguesa de hoje, de modo que era como se a família não tivesse tido evolução alguma através da história” (ENGELS, 1974:6). Era como se Deus e/ou a Natureza tivessem, desde sempre, reservado à mulher um papel subalterno no interior da família e da sociedade.
Na seqüência do livro de Bachofen foram publicadas obras como O casamento primitivo (1865) de autoria de Mac Lennan, Origem da Civilização (1870) de Lubbock e, por fim, A sociedade antiga (1877) de Lewis Morgan. Esta última teve um forte impacto sobre Marx e Engels. No prefácio de A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado afirmou-se: “Na América, Morgan descobriu de novo, e à sua maneira, a concepção materialista da história – formulada por Marx, quarenta anos antes” (ENGELS, 1974:1).
Isso não significa que Engels e Marx abonassem tudo o que dissera Morgan. O próprio Engels, numa carta à Kautsky de 1884, escreveu: “A coisa, aliás, não teria sentido se eu quisesse escrever ‘objetivamente’ não criticando Morgan, não utilizando os resultados recentemente conseguidos, não os colocando em relação como nossas concepções e os dados já estabelecidos. Isto não serviria em nada aos nossos operários” (ALAMBERT, 1986:26). Na última versão da obra (1891), Engels já sentiu a necessidade de fazer algumas alterações baseadas no desenvolvimento da ciência nos sete anos decorrido desde a primeira edição.
O grande mérito destas obras, publicadas nas décadas de 1870 e 1880, foi a constatação de que a família tinha história e que, ao longo dos séculos, tinha conhecido várias formas. A família monogâmico-patriarcal era apenas uma delas. Conclusão: o poder masculino e a submissão da mulher não eram eternos, como diziam as religiões e as pseudociências racistas e sexistas da época.
Entre 1880 e 1881, Marx estudou profundamente a obra de Morgan e produziu cerca de cem páginas de anotações. Depois passou a devorar o que havia de mais atualizado sobre o assunto. O seu objetivo era escrever um tratado sobre a evolução da família e a relação entre os sexos, mas morreu antes que pudesse concluir o seu ousado projeto. Infelizmente Marx morreu, também, sem concluir os capítulos sobre as classes sociais e o Estado, que comporiam a sua obra magna O Capital. Talvez, se tivesse concluído estes importantes trabalhos, teríamos uma outra visão sobre o fundador do materialismo-histórico.
A empolgação de Engels pelas descobertas de homens como Bachofen e, especialmente Morgan, pode ser aquilatada ainda no prefácio de 1891. Ali concluiu que o “descobrimento da primitiva gens de direito materno, como etapa anterior à gens e direito paterno dos povos civilizados, tem, para a história primitiva, a mesma importância que a teoria da evolução de Darwin para a biologia e a teoria da mais-valia, enunciada por Marx, para a economia política” (ENGELS, 1974:17).
Morgan havia ido mais longe que Bachofen, que era idealista, ao afirmar que a evolução da família estava relacionada, em última instância, às transformações ocorridas no mundo da produção. Foi do livro de Morgan, por exemplo, que Engels e Marx extraíram a famosa divisão da sociedade antiga em “três épocas principais”: estado selvagem, barbárie e civilização – divididos segundo os “progressos obtidos na produção dos meios de subsistência”. Morgan, também, tratou de maneira mais fundamentada – e de maneira materialista – a transição do matriarcado ao patriarcado monogâmico.
Seguindo a trilha aberta Morgan, Engels afirmou: “há três formas principais de casamento que correspondem aproximadamente aos três estágios fundamentais da evolução humana. Ao estado selvagem corresponde o matrimônio por grupos; à barbárie, o matrimônio sindiástico; e à civilização corresponde a monogamia com seus complementos: o adultério e a prostituição” (ENGELS, 1974:81).
Na sociedade primitiva a descendência “contava apenas pela linha feminina”. Os filhos não pertenciam a gens paterna e sim a gens materna. “Com a morte do proprietário de rebanhos estes teriam de passar primeiramente para seus irmãos e irmãs e aos filhos destes últimos, ou aos descendentes das irmãs de sua mãe. Quanto aos seus próprios filhos, eram deserdados”. Continuou Engels: “À medida, portanto, que as riquezas aumentavam estas davam ao homem, por um lado, uma situação mais importante na família que a da mulher, e, por outro lado, faziam nascer nele a idéia de utilização dessa situação a fim de que revertesse em benefício dos filhos a ordem de sucessão tradicional. Mas isso não podia ser feito enquanto permanecia em vigor a filiação segundo o direito materno. Este deveria, assim, ser abolido e foi o que se verificou”. Assim “foi estabelecida a filiação masculina e o direito hereditário paterno” (MARX, ENGELS, LENIN, 1980:15).
Engels, como teórico socialista, tinha plena consciência da significação social e política das descobertas daqueles cientistas, particularmente no que dizia respeito à libertação da mulher. Para ele ficava claro que a “reversão do direito materno foi a grande derrota histórica do sexo feminino. O homem passou a governar também na casa, a mulher foi degradada, escravizada, tornou-se escrava do prazer do homem e um simples instrumento de reprodução”. A monogamia, assim, “não apareceria de modo algum, na história, como a reconciliação entre o homem e a mulher e menos ainda como a sua forma mais elevada. Ao contrário, ela manifesta-se como a submissão de um sexo ao outro, como a proclamação de um conflito entre os sexos, desconhecido até então em toda a pré-história”.
Por isso, concluiu que “o primeiro antagonismo de classe que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia e a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo sexo masculino. A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, ela abre, ao lado da escravatura e da propriedade privada, a época que dura ainda hoje, onde cada passo para frente é ao mesmo tempo um relativo passo atrás, o bem-estar e o progresso de uns se realizam através da infelicidade e do recalcamento de outros” (MARX, ENGELS, LENIN, 1980:22-23).
A monogamia teria sido “fundada sob a dominação do homem com o fim expresso de procriar filhos duma paternidade incontestável, e essa paternidade é exigida porque essas crianças devem, na qualidade de herdeiros diretos, entrar um dia na posse da fortuna paterna”. Agora “somente o homem pode romper esse laço (matrimonial)”, “o direito da infidelidade conjugal fica-lhe (...) garantido pelo menos pelos costumes”, no entanto, a mulher que deseje conquistar sua liberdade sexual será “punida mais severamente do que em qualquer outra época precedente”. Nesta forma de casamento e de família, “aquilo que para a mulher é um crime de graves conseqüências legais e sociais, para o homem é algo considerado honroso, ou, quando muito, uma leve mancha moral que se carrega com satisfação” (ENGELS, 1974:81).
A monogamia gerava uma sociedade essencialmente hipócrita e Engels ironizou esta situação: “Os homens haviam obtido vitória sobre as mulheres, mas derrotadas se encarregaram generosamente de coroar a fronte dos vencedores. Ao lado da monogamia e do heterismo, o adultério torna-se uma instituição social fatal – proscrita, rigorosamente punida, mas impossível de ser suprimida. A certidão da paternidade repousa, antes e depois (...) na convicção moral, e, para resolver a insolúvel contradição, o código de Napoleão decreta, art. 312: ‘A criança concebida durante o casamento tem por pai o marido’. Eis aí o último resultado de três mil anos de monogamia” (MARX, ENGELS, LENIN, 1980:24-25). Lembramos que Engels escreveu estas palavras em 1884, quando a monogamia-patriarcal reinava quase absoluta no mundo.
O primeiro passo para emancipação – e não o último - seria a incorporação da mulher no trabalho social produtivo. Para Engels (e para Marx) “a emancipação da mulher e sua equiparação ao homem são e continuarão sendo impossíveis, enquanto ela permanecer excluída do trabalho produtivo social e confinada ao trabalho doméstico, que é um trabalho privado. A emancipação da mulher só se torna possível quando ela pode participar em grande escala, em escala social, da produção, e quando o trabalho doméstico lhe toma apenas um tempo insignificante” (ENGELS, 1974:182).
O capitalismo iniciou esta revolução democrática, mas foi incapaz de concluí-la, pois a forma monogâmico-patriarcal – que está na gênese da dominação da mulher, nasceu justamente da “concentração das grandes riquezas nas mesmas mãos – as dos homens – e do desejo de transmitir essas riquezas por heranças aos filhos desses mesmos homens”. Assim, “a preponderância do homem no casamento é uma simples conseqüência da sua preponderância econômica e desaparecerá com esta” (MARX, ENGELS, LENIN, 1980:24-25).
A superação deste estado de coisa milenar deve passar, necessariamente, por uma revolução social que transforme os meios de produção, e a riqueza produzida por eles, em propriedade social. Assim, a conclusão do processo emancipatório passa pela eliminação da propriedade privada dos meios de produção e pelo fim da exploração do homem pelo homem. Somente uma profunda revolução social, de caráter socialista, poderia limpar o terreno para que a libertação da mulher pudesse, finalmente, ser completada. Engels, em minha opinião, subestima a capacidade do capitalismo de quebrar “a preponderância econômica” do homem no interior da família. Afinal, o século XIX dava pouquíssimos sinais de que isso poderia acontecer.
Por outro lado, a conquista do socialismo é uma das condições para emancipação da mulher, mas ela não é ainda suficiente. A emancipação das mulheres exige uma dura e prolongada luta de idéias no interior do Partido e da sociedade, inclusive após a revolução socialista. A emancipação, portanto, não será o resultado automático – mais ou menos natural – do processo de expropriação dos principais meios de produção das mãos da burguesia.
Engels acreditava que, na sociedade de comunista futura, a monogamia deveria adquirir uma nova qualidade, pois se tornaria “enfim, uma realidade – mesmo para o homem”. Seria, assim, uma monogamia de novo tipo, assentada na plena igualdade e liberdade entre os sexos. Marx e Engels, ao contrário que pensam alguns, estavam longe de serem defensores da “promiscuidade sexual”.
Conclusão
A antropologia e a etnologia modernas negam que a humanidade tenha, necessariamente, passado por uma fase caracterizada pela ascendência da mulher sobre o homem. Alguns pesquisadores chegam mesmo a negar a existência de tais sociedades matriarcais.
Uma renomada marxista (e feminista) brasileira, Zuleika Alambert, também, aderiu às críticas feitas às conclusões de Morgan e Engels. Para ela o controle nas sociedades primitivas “sempre (grifo é nosso) foram exercido pelos homens”, pois a “relação entre os sexos nas sociedades primitivas era, fundamentalmente, assimétrica e não recíproca. No sistema matrilinear a autoridade pertencia ao irmão da mulher e ao tio materno, enquanto no patrilinear pertencia ao pai e ao marido” (ALAMBERT, 1983:32). Mas, logo em seguida, relativiza tal afirmação ao dizer: “Assim, por exemplo, nem a tese do matriarcado total (grifo nosso), nem a equivalência da descendência matriarcal com uma posição de predomínio social da mulher foram confirmadas pela pesquisa moderna” (ALAMBERT, 1983:35).
Por outro lado, até a segunda metade do século XX, autores soviéticos, como Diakov e Kovalev, continuavam afirmando que o “clã materno” era “uma fase inevitável da evolução da sociedade humana” e que no matriarcado “a mulher era igual ao homem na vida econômica e social”. Para eles, os que buscavam “desmentir as idéias sustentadas por Engels” visavam, exclusivamente, “provar a eternidade do papel subalterno da mulher” (DIAKOV E KOVALEV, 1982:37-38). Mas, contraditoriamente, seriam as teóricas do movimento feminista que mais se bateriam contra a tese do matriarcado.
Acho que nesta discussão seria bom não irmos nem tanto ao céu nem tanto a terra. Hoje já se sabe que a classificação da história das sociedades primitivas feita por Morgan é bastante imprecisa. O próprio Engels, logo na abertura de seu livro, afirmou que a classificação de Morgan “permanecerá em vigor até que uma riqueza de dados muito mais considerável nos obrigue a modificá-la” (ENGELS, 1974:21). Como previu, os novos aportes oferecidos pela etnologia, antropologia e pela história nos obrigaram a reformular os modelos de Morgan.
O principal erro desses estudiosos do século XIX foi o de ter conjeturado a existência do matriarcado em todas as sociedades primitivas na fase denominada barbárie. Algo que se mostrou incorreto. Os próprios cientistas soviéticos citados acima chegaram à conclusão de que “enquanto Morgan (...) tinha indicado só uma linha de evolução da sociedade humana, os sábios do século XX puderam traçar as vias complexas e múltiplas do progresso do homem” (DIAKOV E KOVALEV, 1982:17).
É claro que isto não nega, como afirmam alguns autores anti-engelsianos, que em determinadas sociedades possam ter existido – e os indícios são fortes neste sentido – organizações sociais de tipo matriarcal na qual as mulheres pudessem desfrutar de um maior prestigio social e econômico do que viriam a ter nos períodos posteriores e o simples reconhecimento desta possibilidade continua ter para nós um significado revolucionário.
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