"O homem é um animal político" Aristóteles
Terminada a greve dos bancários(as) de 2016, firmado o acordo bianual 2016-2018, ao movimento sindical – dirigentes sindicais e base – resta a incontornável necessidade de avaliar os resultados e o futuro do movimento.
A greve assumiu dimensão inesperada: 31 dias, superando mais de 13 mil dependências. Esses dados, todavia, eludem outro, desconcertante, que é uma greve forte em paralisação, mas fraca em mobilização, o que se evidencia - salvo exceções – na dificuldade de realizar atividades públicas massivas, mesmo em unidades da federação com grande concentração de bancários, como o DF.
Minha hipótese é que três elementos contribuíram para essa adesão sem mobilização: a) o esgotamento físico e psicológico da categoria; b) o medo do assédio moral aliado à desconfiança da sua representação sindical, atingida brutalmente pela desconstrução da legitimidade dos trabalhadores(as) no processo de golpe de estado; c) a ausência de atividades mais atrativas, lúdicas, didáticas para os bancários(as) e a população, o que coloca a greve num beco sem saída – no curso desta campanha – quanto à dimensão da participação.
A exigência de uma greve anual, independente do contexto mais amplo, levou ao entendimento de o movimento paredista ser obrigação exclusiva das direções dos sindicatos, e que basta aderir, sem participar de outra atividade, exceto a assembleia. Isso torna a greve um gigante de pés de barro, com o agravante de a fixidez do modelo contribuir para o esgotamento da greve como um instrumento de luta, mas não o único, porque a luta sindical é muito maior que a greve. Não há dúvida, a fragilidade da greve está na baixa mobilização da categoria, que desconhece sua força política e importância econômica para o país.
Observo que uma grande parcela da categoria, contrária à greve, ao mesmo tempo exige a greve dos sindicatos. Desfiliam-se, mas vão à assembleia para votar pelo início da greve, ainda que não a construam, e inclusive furem a greve, mesmo nos bancos públicos, com garantia de emprego. É a visão do sindicato como terceirizado da minha participação política. Essa parcela é a mesma que exige a despolitização corporativa do movimento, e que ignorou o alerta sobre as consequências do golpe de estado para a soberania, a democracia, os direitos dos trabalhadores e o futuro dos bancos públicos. Lamentavelmente, a minha geração, pós-98, em especial concursados(as) nos governos Lula e Dilma, compõem fortemente esse estrato. Sem os direitos anteriores a 1998, obtiveram as vagas abertas pela luta coletiva, como se fosse fruto exclusivo do esforço individual. Com o piso rebaixado e em lenta recuperação, foram seduzidos por promoções que elevaram exponencialmente seu salário, advindas de bancos fortes para uma agenda desenvolvimentista e abertos à população. Seu individualismo só perde para a tacanhez política de quem nada vê para além de seu próprio umbigo, ignorando que a mesma política que lhes permitiu entrar e ascender, ao mudar pode lhes custar não apenas o emprego, mas o próprio banco em que trabalham. São a nossa parte da população que ganhou os direitos, mas sem politizar esse trajeto, capturados pelas potentes armas de sedução da imprensa e dos próprios bancos e pela escravidão face à comissão e à remuneração variável, diante do piso diminuto da categoria, apesar de todos os avanços na recomposição do piso em uma década.
O modelo atual levou ao descolamento das reivindicações da categoria das pautas da sociedade, que se expressa no conservadorismo em que a categoria bancária se meteu, estimulada pela lógica de rapinagem que o sistema financeiro lhe impôs a partir da sedução e da paulada. Exceto honrosas exceções, como o Sindicato dos Bancários da Bahia - com jornal diário, programa na TV, amplo protagonismo na sociedade baiana - a categoria bancária pouco dialoga com a população e suas necessidades, face à voracidade de um sistema financeiro superexplorador. Em vez de denunciar os juros, os aumentos escorchantes das tarifas, a lógica perversa da dívida pública e defender o papel social e desenvolvimentista dos bancos públicos, bancários e bancárias em sua grande maioria ansiaram por ser parte do edifício rentista. Isso leva a uma greve exposta ao escárnio da população mais carente dos serviços bancários, exatamente a mais pobre e excluída das tecnologias, impondo um limite objetivo à legitimidade da luta da categoria, o que se torna ainda mais dramático a partir de greves longas. Essa realidade se radicalizou com a previsível – exceto para os analfabetos(as) políticos - unidade verificada entre o interesse do governo golpista, da banca privada e da imprensa que criminaliza a luta sindical.
O modelo grevista bancário padece também do decifrar da sua estratégia fixa por parte dos sofisticados elementos de inteligência e estatística à disposição dos banqueiros. Anualmente, o movimento grevista serve à estratégia de imposição do auto-atendimento à população, impulsionada por um investimento maciço em tecnologias bancárias, pela revolução tecnocientífica, a internet, e seu avançar para a telefonia celular. Nesse cenário, o esvaziamento dos piquetes pelos bancários, a ausência de diálogo com a sociedade, a falta da solidariedade no interior da categoria, a incapacidade de incorporar as mulheres na luta, a distância da mobilização das próprias famílias dos bancários, tudo coloca-nos num patamar muito inferior na disputa da sociedade, ainda mais diante dos oligopólios da mídia e de um governo umbilicalmente ligado ao rentismo e de natureza golpista. O inimigo decifrou a estratégia, e é preciso reinventá-la, sob pena de comprometermos o instrumento de luta importantíssimo que é a greve.
Impasse semelhante viveu a nascente classe operária no início do século XX, quando exitosas e massivas greves foram vencidas por serem apenas greves e não armas politicamente construtoras da classe em si, ou seja, da classe trabalhadora como atora política auto-centrada, mas voltada à disputa da hegemonia, o que só pôde ser enfrentado pela construção do Partido Comunista do Brasil, em 1922, surgido pela influência da vitória da Revolução Socialista Russa, mas também pela incapacidade de o movimento anarquista oferecer à classe trabalhadora os instrumentos de sua organização política. Como bem decifrou Lênin, o movimento sindical em si mesmo, apenas discute os termos da exploração capitalista. Sem uma consciência superior, a luta sindical limita-se ao economismo, ao corporativismo, sendo presa fácil para a organização dos patrões, o que ganha contornos ainda mais sinistros quando tratamos da hiper-concentração dos bancos no Brasil, e pelo próprio papel do sistema financeiro no quadro mais amplo de hipertrofia do rentismo parasitário como elemento central da sociedade capitalista no imperialismo. A crise do Partido dos Trabalhadores e da frente que o levou ao governo, anterior à crise política, é a própria crise dessa representação política da maioria, capturada pelo gradualismo, pelo possibilismo, pelo pragmatismo e pela incapacidade de construir uma efetiva frente política com bases classistas, abandonada pelo hegemonismo no seio da esquerda, péssimo conselheiro. Sem utopia, sem luta pela opinião da sociedade, aferrada a um modelo, a um calendário, a luta bancária exige sua reinvenção para enfrentar o sistema financeiro que comanda o país, necessidade incontornável para um salto na mobilização e nas conquistas e, sobretudo, para a luta contra o golpe.
Diante dessas reflexões é que vislumbramos o sentido heroico da greve bancária de 2016. Ter resistido por 31 dias em campo claramente desfavorável, a despeito do avanço político e institucional do golpe e da restauração neoliberal, é fato que marca a mudança da conjuntura para um novo cenário, ainda mais desafiador. É de um cinismo inaceitável não reconhecer o quanto lutamos numa das mais longas greves da história. A perda de 2016 no reajuste, evidenciada como principal revés nessa campanha, não pode esconder os avanços no âmbito da pauta extensa e da própria existência do Comando e do acordo coletivo nacional, que contaram com a contribuição indispensável da unidade CUT e CTB, apesar das divergências e da adversidade. Registre-se que nos demais itens, os benefícios, tivemos ganho real e asseguramos a PLR social na Caixa por dois anos.
A alternativa, diante do esgotamento da greve, seria uma resistência pífia, debelada facilmente pelo consórcio bancos-governo golpista-mídia oligopólica, com o agravante da exposição da base dos bancos públicos, em especial em Brasília, à previsível vingança dos banqueiros, a cobrar mais de um mês de reposição dos dias parados. Não basta saber iniciar a greve, é preciso saber encerrá-la a tempo de evitar que o refluxo do movimento ponha a perder todo o conquistado, expondo a classe à represália do capital. Papel central na avaliação do comando nacional, foi interromper a greve preservando a base que aderiu ao movimento, para estimular as lutas a seguir, que tendem a ser ainda mais encarniçadas e complexas. A vitória da anistia obtida dos dias de greve e o ganho real para 2017, preservam a base grevista, impedem a continuidade das perdas e da política do abono como uma constante, ganham tempo para amplo balanço e reorganização dos bancários(as), sobretudo nos bancos públicos, para a quadra de resistência após o golpe. Seremos obrigados a rever as formas de luta que tem seu corolário, mas não o seu fim exclusivo, na greve. Teremos de debater banco público, emprego, Sistema Financeiro Nacional, Política, teremos de defender os bancos públicos da privatização, da terceirização, das reestruturações, do banco digital, não poderemos debater apenas salário, e nem poderemos fazê-lo sem a reconstrução da organização sindical por local de trabalho e a recomposição da unidade popular e da disputa pela hegemonia na sociedade. Neste sentido, o gosto amargo na boca em face da perda de 2016 (1,31%) deve ensejar uma reflexão profunda sobre os caminhos atuais para a luta sindical, jamais sendo esquecida, mas cobrada adiante, porque não somos aqueles que viram a greve passar, somos exatamente aqueles que lutamos cada dia da greve e conquistamos, e a luta continua.
* Sociólogo, bancário do BB, Diretor de Política Sindical do Sindicato dos Bancários de Brasília, membro da direção da CTB.