Onde está a direita brasileira?
A recomposição Serra com Kassab obriga o PT a repensar sua tática de campanha em São Paulo. Depois de uma controvertida aproximação com o prefeito, fica difícil manter uma candidatura de oposição. Se olharmos para os aliados do governo federal, não fica fácil também apostar num embate entre direita e esquerda.
Gilberto Maringoni
José Serra está reunindo condições para entrar pesado na disputa pela prefeitura de São Paulo. A recomposição do ex-governador com sua criatura, Gilberto Kassab, pode representar um golpe de mestre contra a candidatura de Fernando Haddad. A maioria dos dirigentes petistas alimentou a hipótese de se aliar com uma parcela da direita paulistana para vencer o tucanato a qualquer custo.
A pirueta do dirigente do PSD embaralha o jogo. O PT terá de encontrar rapidamente uma linha de campanha diferente da que vinha acalentando até as tratativas com o prefeito da capital.
O partido fez, ao longo dos últimos seis anos, uma cerrada oposição a gestão de Kassab. Denunciou privatizações, aumentos de tarifas, agressões contra camadas populares, descasos com a infraestrutura, superfaturamentos de obras e outras mazelas. Esperava utilizar a munição acumulada como mote na campanha. Agora que o potencial noivo fugiu do altar após um namoro público, a tática dificilmente colará no eleitorado.
Outra arma de campanha – a denúncia das privatizações tucanas – está com a pólvora molhada desde que o governo federal decidiu privatizar os aeroportos em leilões cuja coreografia lembra muito as vendas de estatais da Era FHC. É claro que os petistas seguirão com suas manhosas explicações de que “concessão não é privatização” para tentar evidenciar diferenças com o possível adversário.
Campanha despolitizada
Uma variante na linha de ataque, caso Serra seja mesmo candidato, é insistir na tecla de que ele abandonou a prefeitura na metade do mandato para se candidatar a governador. É uma ofensiva de risco. O atual governador gaúcho Tarso Genro (PT) fez o mesmo em 2002. Desincompatibilizou-se da prefeitura de Porto Alegre para tentar o governo do estado. Perdeu na época, por outros motivos, mas levou em 2010.
A saída para o PT seria apostar na marquetagem sobre quem seria o melhor administrador para a capital. Pode colar, dado o imenso prestígio da agremiação no plano nacional. Será um duelo de máquinas eleitorais: de um lado o governo federal e de outro o governo do estado e a prefeitura.
Tudo leva a crer que esta será uma campanha despolitizada. Os contrastes entre PT e PSDB, ao longo dos anos, têm se mostrado mais como nuances de um mesmo projeto do que o embate de duas diretrizes antagônicas. No âmbito federal, ambos investiram em duros ajustes fiscais, em juros elevados, em prioridade para o pagamento das dívidas financeiras e em privatizações. Os graus variaram e isso fez a diferença em momentos de crise. O PT elevou o salário mínimo e investiu em políticas sociais focadas. O PSDB cortou mais na área social, congelou salários do funcionalismo e foi mais radical na ortodoxia. Mas nenhum rumou na direção de penalizar os que sempre ganharam na brutal desigualdade social do país.
A reforma agrária, depois de avançar um pouco nos governos de FHC e de Lula, estancou desde o ano passado. Não se fala mais em reforma tributária progressiva que taxe as grandes fortunas. A regulamentação dos meios de comunicação saiu da agenda oficial. E, entre outras medidas, a CPI da privataria segue no congelador.
Esquerda e direita?
Será ainda possível fazer uma campanha da esquerda contra a direita? Se entendermos, grosso modo, esquerda como o setor que enfrenta os mercados e defende os de baixo e direita aqueles que se aferram na defesa do capital e demonstram pouca sensibilidade social, a mensagem ficou clara nas duas últimas campanhas presidenciais. A postulação do PT representava a esquerda e a do PSDB a direita.
Mas se olharmos para a vida como ela é, as leituras ficam complicadas. Onde ou com quem está a direita brasileira?
No Brasil, pelo peso que teve a ditadura militar, quase ninguém se proclama abertamente de direita. No PSDB, todos se consideram de centroesquerda. No PMDB, no PTB, no PP e em outras legendas, a situação deve ser semelhante. Se nos pautarmos pela autodeclaração, não existe direita no Brasil.
Alguns petistas, com razão, acusam a coligação PSDB-DEM-PPS-PV de representar a direita no jogo institucional. Afinal, foi esta coalizão a responsável pela implantação a ferro e fogo do modelo neoliberal entre nós.
Mas é preciso mirar a base institucional – base parlamentar mais a composição da administração – de cada governo para tentarmos ver as cores do espectro político.
Composições de governo
O primeiro governo FHC (1995-1999) era integrado por PSDB, PFL, PMDB e PTB. O PMDB em algumas votações no Congresso apresentou-se dividido, mas a maioria era inequivocamente governista. Em seu segundo mandato (1999-2003), o tucano foi apoiado por PSDB, PFL, PMDB, PTB, PPS e PPB (atual PP). Foram essas agremiações que patrocinaram a venda acelerada de patrimônio público ao longo dos anos 1990.
O primeiro governo Lula (2003-2007) era composto por PT, PC do B, PSB, PTB, PDT e PL. Na gestão seguinte (2007-2011), a base aliada era formada por PT, PC do B, PSB, PTB, PL, PMDB, PL (atual PR). O PV não integrou formalmente as administrações, apesar de Gilberto Gil, Ministro da Cultura, ser filiado ao partido.
Quem é esquerda e quem é direita nessa sopa de letras?
Podemos, mais uma vez grosso modo, classificar como esquerda (por suas histórias) o PT, o PCdoB, o PSB e o PDT. O PSOL representa no Congresso a diminuta oposição de esquerda. A régua é muito flexível, pois seria difícil dizer que a atuação de líderes como Antonio Palocci, Paulo Bernardo, Guido Mantega (todos do PT), Paulinho da Força (PDT) ou Fernando Bezerra (PSB) tenham hoje em dia alguma coisa a ver com esquerda.
A direita, por sua vez, seria encarnada por PSDB, DEM, PMDB, PTB, PPS, PV, PSD, o PP, o PR, o PTB, o PSC, o PRB, o PTdoB, o PMN, o PHS, o PRP, o PRTB, o PSL e o PTC. Embora a maioria deles apresente declarações genéricas como programas partidários, suas atuações são marcadamente liberais e pró-mercado.
Bases parlamentares
Apesar dos petistas alardearem que a direita está toda na oposição, a afirmação não resiste a nenhuma análise séria.
Se olharmos a base parlamentar do governo, vamos verificar que a direita majoritariamente abriga-se sob as asas da situação.
Vejamos por blocos e número de deputados entre os 513 da Câmara:
Esquerda no governo (PT-PSB-PDT-PCdoB) – 154
Direita no governo (PMDB-PSD-PP-PR-PTB-PSC-PRB-PTdoB-PMN-PHS-PRP-PRTB-PSL-PTC) – 257
Direita na oposição (PSDB-DEM-PPS-PV) – 99
Esquerda na oposição (PSOL) – 3
No Senado o quadro não é diverso. O quadro assim se divide, num universo de 81 senadores:
Esquerda no governo (PT-PDT-PSB-PCdoB) – 24
Direita no governo – (PMDB-PTB-PR-PP-PSD-PRB) – 39
Direita na oposição – (PSDB-DEM-PV) – 16
Esquerda na oposição (PSOL) – 1
Sem partido – 1
Além disso, existem bancadas transversais e informais de empresários, ruralistas, evangélicos, sindicalistas e outros que se articulam acima das fronteiras partidárias. O DIAP (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar) tem bons levantamentos sobre essas coalizões.
O que isso tudo quer dizer?
Muitas coisas.
Travas nas mudanças
A primeira é que o freio para a não implantação de reformas progressistas na sociedade brasileira não está na oposição, mas no governo. É a base aliada que trava o avanço da reforma agrária (ruralistas), do combate à homofobia (evangélicos), da reforma tributária (praticamente toda a base), da ampliação da comissão da verdade (figuras criadas na ditadura, como José Sarney, Paulo Maluf, Fernando Collor) e da CPI da privataria, entre outras iniciativas. Neste último caso, o governo compraria uma briga com seus apoiadores oriundas dos governos FHC.
A segunda é que os embates eleitorais não têm se dado entre projetos excludentes ou oponentes no espectro ideológico.
Divisão no conservadorismo
A direita brasileira se dividiu a partir de 2002. Uma facção resolveu ficar na oposição e dali se fortalecer para voltar ao Planalto. Está se dando mal, pois o essencial de suas diretrizes foi abraçado pelo governo. Seu discurso tornou-se disfuncional.
A partir do segundo mandato de Lula, o liberalismo ganhou o impulso de um desenvolvimentismo difuso, possibilitado pelo bom desempenho do balanço de pagamentos e pela ampliação do mercado interno. Ambos são resultados de ações governamentais. Com crescimento econômico, inclusão social e aumentos salariais, o modelo ganhou nova legitimidade e a gestão petista conheceu inéditos índices de aprovação.
Outra facção da direita – majoritária – resolveu se integrar ao governo e disputar seus rumos. Está tendo amplo sucesso, como se pode ver pelo aumento dos cortes fiscais, pela guinada da política externa em direção a um maior alinhamento com os EUA e pela volta das privatizações. Em outras palavras, a direita passou a utilizar uma das táticas caras à esquerda, o “entrismo”.
Aqui voltamos ao início. Serra – caso saia candidato – unificará o PSDB, contará com o apoio do PSD e buscará uma aliança com o PMDB, aliado de primeira hora do governo Dilma. O PCdoB deve arriscar uma candidatura apoiada pelo PDT. O PTB, o PV e o DEM lançarão candidatos, além do PSOL e do novíssimo PPL. A tática é marcar pontos para a disputa nacional.
Nesse quadro, como o PT vai se diferenciar claramente do PSDB? Competência X incompetência, éticos X antiéticos, moralistas X amorais, abortistas X carolas? O arsenal e a criatividade da marquetagem não tem limites e nem prima pelo bom gosto. Mas política de verdade pode ser artigo em falta...
Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).
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