A sociedade brasileira vive bombardeada pela afirmação de que a carga tributária no Brasil é alta, que afeta negativamente a produção e o consumo de bens e serviços. Essa unanimidade tem as suas razões, mas foi construída com o propósito de esconder interesses que se beneficiam do atual processo de financiamento e de alocação dos recursos públicos.
A carga tributária poderia ser menor para acompanhar a situação de outros países com grau de desenvolvimento econômico e social similar ao nosso, mas a principal distorção do sistema tributário brasileiro sempre foi a injustiça tributária.
Ao contrário do verificado nos países mais desenvolvidos, onde a maior parte da tributação recai sobre o patrimônio e a renda das pessoas, o sistema tributário brasileiro tem uma parcela importante de arrecadação na tributação indireta, sobre o consumo.
A distorção do nosso sistema tributário aumentou muito quando, entre 1996 e 2003, a principal diretriz das políticas públicas esteve voltada para a produção de significativos ajustes fiscais. A carga tributária aumentou consideravelmente nesse período, passou de 26,4% para 31,9% do PIB. E o ônus desse ajuste recaiu particularmente sobre as famílias de menores rendas.
Estudo do IPEA mostra que, em 2003, as famílias com renda de até dois salários mínimos estavam submetidas a uma carga de 48,8%. Em 1996, esse patamar era de 28,2%. A esse segmento social foi imposto um acréscimo de 20,6 pontos percentuais na sua participação no financiamento do Estado brasileiro e, naturalmente, das políticas de superávit fiscal praticadas no período. Para as famílias com renda superior a trinta salários mínimos, em 2003, a tributação alcançava 26,3% de sua renda. Em 1996, esse percentual era de 17,9%, ou seja, o esforço extra foi de apenas 8,4 pontos.
Esse direcionamento, determinado no período, pela apropriação da renda dos mais pobres agravou distorções. Ao final de 2003, a tributação direta, que incide sobre propriedades e rendas, das famílias com renda de até dois salários mínimos consumia 3,1% dessa renda. Para as famílias com renda superior a trinta salários, ou seja, no mínimo quinze vezes mais, essa tributação era de 9,9%. Já a tributação indireta, que incide sobre o consumo, inclusive de bens e serviços essenciais, para as famílias de menores rendas, equivalia a 45,8% da renda líquida (após a tributação direta). Para as famílias de maiores rendas, 16,4%.
Nesse sistema injusto, 16,3 milhões dos brasileiros estão obrigados a apresentar e pagar Imposto de Renda. Analisando os dados relativos a essas declarações, fornecidos pela Secretaria da Receita, percebe-se o tamanho da concentração patrimonial. Na base da pirâmide, mais de 97% dos declarantes possuem apenas 49% do patrimônio declarado. No topo, 0,1%, cerca de 18 mil pessoas, concentram 26% do patrimônio do conjunto das pessoas físicas.
Infelizmente, as mudanças na estrutura tributária ocorridas a partir de 2003 pouco modificaram essa realidade de injustiça fiscal. Grandes inovações se deram no campo da alocação dos recursos públicos, menos para o superávit e mais para as políticas públicas, inclusive os benefícios de distribuição de renda. Mas o desrespeito à capacidade econômica do contribuinte, uma das marcas do nosso sistema tributário, ainda está a espera de solução. Enquanto essas mudanças não ocorrem, a atual regressividade exclui da política tributária a possibilidade de produzir efeitos distributivos, que poderiam diminuir as desigualdades em nosso país.
A dificuldade em aprovar a reforma tributária que o país precisa está em romper com determinados interesses. É possível perceber que, tanto do ponto de vista da justiça tributária, quanto do respeito à Federação, os interesses de uma minoria titular de altíssimas rendas financeiras têm prevalecido sobre a imensa maioria da população. Para inverter essa realidade, o país precisa de mudanças na estrutura tributária que priorizem a justiça fiscal e o modelo federativo.
Por justiça fiscal, é preciso diminuir a tributação sobre o consumo e agravar os impostos sobre a renda e o patrimônio. Isto significa diminuir a tributação sobre os mais pobres e sobre significativas parcelas da classe média. O Imposto de renda no Brasil, em comparação com o praticado nos demais países desenvolvidos, tem uma das menores parcelas de isenção, mesmo a alíquota mínima – 7,5% – é uma das maiores. Em contrapartida temos uma das menores alíquotas máximas e, ainda assim, abrangendo uma parcela desproporcionalmente alta dos contribuintes. Esse imposto demanda mudanças radicais para ficar mais seletivo, diminuir drasticamente a tributação sobre as rendas do trabalho e alcançar as rendas financeiras e as demais rendas do capital.
É preciso implantar a tributação sobre grandes fortunas, as grandes heranças e os ganhos dos rentistas, ao passo em se diminuem os encargos tributários sobre o consumo, a circulação de bens e serviços e sobre os segmentos sociais de menor capacidade econômica.
As principais mudanças devem considerar a necessidade de dar efetiva capacidade ao estado para atender adequadamente à prestação de serviços, ao financiamento dos direitos sociais e à oferta de bens públicos ao conjunto dos seus habitantes, enfim ao desenvolvimento do conjunto das políticas públicas.
As alterações no marco de exploração do petróleo no Pré-Sal podem indicar um caminho alternativo para financiar políticas públicas fundamentais. Não por acaso, o Congresso e o Governo vincularam parte daquelas receitas públicas à saúde e à educação.
No caso da tributação sobre grandes fortunas, o reconhecimento de que os mais privilegiados podem contribuir com o bem estar geral pode ser exemplificado por matéria publicada no The New York Times, em que o norte-americano Warren Buffett, um dos homens mais ricos do mundo, defendeu a implantação de maior tributação aos mais ricos nos Estados Unidos da América, manifestando desconforto por pagar, relativamente, menos impostos (17%) que a média de seus funcionários (36%). Também um grupo de 16 megamilionários franceses recentemente publicou na revista “Le Nouvel Observateur” um apelo por maior taxação dos mais ricos.
Dados da Secretaria da Receita Federal do Brasil comprovam a concentração de renda no Brasil e apontam para esta importante fonte de recursos que poderiam ser destinados ao financiamento da saúde pública. Em nota técnica da Coordenadoria Geral de Estudos Econômico-tributários e de Previsão e Análise de Arrecadação, vemos que, em 2008, 997 contribuintes declararam patrimônio superior a R$ 100 milhões.
Pela mesma nota, observamos que a Contribuição Sobre Grandes Fortunas, no modelo adotado pelo substitutivo que apresentei ao PLP 48/11, incidiria sobre menos de 40 mil contribuintes. Para este universo, estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, a partir dos dados da Receita Federal, aponta para uma expectativa de arrecadação anual de R$ 12,8 bilhões.
A Contribuição seria cobrada de acordo com a seguinte tabela: | ||
Valor do Patrimônio (R$) | Alíquota | Parcela a deduzir (R$) |
De R$ 4.000.000,01 a R$ 7.000.000,00 |
0,40%
|
16.000,00
|
De R$ 7.000.000,01 a R$ 12.000.000,00 |
0,50%
|
23.000,00
|
De R$ 12.000.000,01 a R$ 20.000.000,00 |
0,60%
|
35.000,00
|
De R$ 20.000.000,01 a R$ 30.000.000,00 |
0,80%
|
75.000,00
|
De R$ 30.000.000,01 a R$ 50.000.000,00 |
1,00%
|
135.000,00
|
De R$ 50.000.000,01 a R$ 75.000.000,00 |
1,20%
|
235.000,00
|
De R$ 75.000.000,01 a R$ 120.000.000,00 |
1,50%
|
460.000,00
|
De R$ 120.000.000,01 a R$ 150.000.000,00 |
1,80%
|
820.000,00
|
Acima de R$ 150.000.000,00 |
2,10%
|
1.270.000,00
|
Neste modelo, 74% do total arrecadado viriam de apenas 900 indivíduos cujas fortunas ultrapassam R$ 120 milhões. Seria, de fato, uma contribuição sobre grandes fortunas.
A Receita informa que ao longo de 2009 – um ano de crise, vale lembrar – o patrimônio das pessoas que superam a casa dos R$ 100 milhões, elevou-se de R$ 418 bilhões para R$ 542 bilhões, crescendo 30% num único ano.
Nesse contexto, uma tributação adicional representaria muito pouco para a capacidade de acumulação patrimonial desse reduzidíssimo segmento social, mas representaria um significativo aporte de recursos para a saúde pública que atende aos 190 milhões de brasileiros. Mais do que isso seria um primeiro passo a combater a regressividade de nosso sistema tributário.
- Jandira Feghali (PCdoB-RJ) é líder do PCdoB na Câmara dos Deputados
Originalmente publicado no Jornal dos Economistas
http://www.corecon-rj.org.br/pdf/JE_agosto_2014.pdf
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