8/1/2013,
http://www.countercurrents.org/lamb080113.htm
Damasco
– Distante apenas alguns quarteirões do hotel em me hospedei, perto do centro de Damasco, o Teatro de Ópera de Damasco, onde o presidente Bashar al-Assad discursou ontem, foi inaugurado em maio de 2004, pelo presidente e sua esposa, depois de completada a construção projetada e iniciada pelo pai de Bashar, Hafez, que planejou detalhadamente a construção, interrompida no final dos anos 1970s. Situado na Praça Umayyad, o Teatro de Ópera é um centro cultural; há alguns meses, encenou-se ali As bodas de Fígaro, de Mozart.
Com cerca de 1.400 lugares, o Teatro estava absolutamente lotado para o discurso de ontem e, como na cena final da ópera de Mozart, depois do discurso de Bashar também se seguiu “uma noite de celebração” para os muitos apoiadores que o presidente tem em Damasco. A glória de Bashar al-Assad, ao tentar deixar o palco na noite passada, cercado por uma legião de apoiadores, pode não ser semelhante à de Cesar nas guerras da Gália, quando descreveu a crise doméstica e sua luta contra a oposição, como luta de defesa para salvar “Roma”. E dificilmente o presidente da Síria será visto por seus críticos, como um John Kennedy no Teatro de Ópera de Viena.
Mas havia conexão profunda entre o homem e seu (vasto) público, durante o discurso caudaloso. Foi um magnífico discurso político, em forma e conteúdo e, sobretudo, pelo calor com que o presidente defendeu o que, para ele, é a causa da salvação da Síria e a causa dos sírios. Sem descartar nenhuma ajuda solidária sobre como pôr fim a atual crise, o presidente insistiu na ideia de que a Síria tem longa história de resistência à ocupação; que várias vezes rejeitou a ideia de receber ordens de governos aos quais, na atual crise, Bashar referiu-se como “chefes dos fantoches” que hoje causam morte, destruição e privações na República Árabe Síria.
Admito que eu estava sem dormir há dois dias. Mas o discurso de Bashar Assad fez-me pensar em falas shakespeareanas de Macbeth ou Brutus. Veio-me à cabeça o argumento de Brutus, em Julio Cesar, de Shakespeare, ato 3, cena 2:
Haverá aqui, neste momento, alguém tão vil que deseje ser escravo? Se houver, que fale, porque o ofendi. Haverá alguém tão grosseiro que não queira ser romano? Se houver, que fale, porque o ofendi. Haverá alguém tão desprezível, que não ame sua pátria? Se houver, que fale, porque o ofendi. Calo-me. Que falem.[1]
Depois do discurso do presidente, uma jornalista local, não raras vezes crítica do regime, comentou – em resposta ao que lhe perguntei, sobre a aparentemente persistente popularidade de Assad, durante época tão extraordinariamente difícil para os sírios: “É verdade. Assad continua popular, em parte porque é homem modesto, quase tímido – e excepcionalmente culto e bem educado, em comparação com alguns monarcas da região, que são, de fato, analfabetos, e absolutamente não se interessam pelo que aconteça fora dos seus palácios-fortalezas.” E continuou: “Antes da crise, não será raro encontrar o presidente, sem qualquer escolta, dirigindo ele mesmo o carro, o banco traseiro cheio de crianças, fazendo compras ou saindo para jantar com a família, ou, vez ou outra, à espera dos filhos na saída da escola. Viu-se, mesmo ontem, na entrada, que ele sorriu para vários conhecidos entre o público. Na saída, não parecia preocupado com sua segurança, nem deu sinais de pressa. Até cumprimentou várias pessoas. Todos sabem que Bashar al-Assad sente-se bem como cidadão comum, entre conhecidos. Não é, nem de longe, o tipo sinistro que seus críticos insistem em apresentar.”
No mesmo dia, já no fim da tarde, estava de volta ao hotel, lendo jornais e assistindo ao noticiário pela televisão, que mostrava cenas do discurso, quando uma camareira entrou para fazer alguma coisa. A moça entrou e imediatamente sorriu ao ver a imagem de Bashar. Repentinamente, deu dois passos até a televisão e abraçou a tela, rindo; aplicou vários beijos na imagem! Tive medo que fosse eletrocutada. Mas ela ria.
À noite, em conversa com um xeique que tem muitos contatos políticos em Damasco, ouvi dele que Assad falou exclusivamente ao povo sírio e aos estrangeiros solidários e aos ‘neutros’. “Assad não falou, absolutamente não, aos inimigos de seu governo.” Sugeriu também que Assad fará mais dois discursos em breve, o próximo, provavelmente, no formato de “conversa ao pé da lareira”, à moda Roosevelt.
O xeique sunita referiu-se à fala de Assad ontem, como o primeiro de três discursos “da vitória” que, pelo que sabe, acontecerão. Falou também sobre os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita em relação ao que está acontecendo na Síria; lembrou que são governos que também têm seus próprios problemas.
No caso do Reino Saudita, e no contexto das consultas cada vez mais frequentes entre iranianos e sauditas sobre a Síria e o grave estado de saúde do rei Abdullah, há a considerar a previsível luta pela sucessão, que já se intensificou recentemente, porque há vários potentados dentro da família real saudita que se opõem furiosamente à atual campanha para minar o regime de Assad. O governo sírio, digam o que digam os detratores, é visto por muitos, nos países do Golfo, como governo de respeitável pedigree árabe e nacionalista, com longa história de respeito mútuo com vários países da região.
Meu informante, xeique e sunita, também já vê sinais de que o governo Obama começa a desinteressar-se de sua guerra clandestina contra a Síria, em parte como resultado das fissuras que já se observam nas vozes, antes muito coesas, de vários porta-vozes da muito erradamente chamada “coalizão”. O presidente Assad, em fala que muitos analistas do Oriente Médio bem farão se virem um “discurso histórico”, ofereceu um novo plano aos sírios, situação e oposição e, também à comunidade internacional que, sim, pode e deve pôr fim imediatamente à crise.
Em ordem sequencial, como cronograma, o plano inclui:
* países estrangeiros param, imediatamente, de financiar, armar e insuflar as gangues terroristas, que deporão armas;
* o governo sírio retira de campo o exército e declara uma anistia;
* inicia-se um conferência-diálogo nacional;
* dessa conferência-diálogo, produz-se um projeto de Constituição, a ser submetida a referendo popular; e
* constitui-se um governo de coalizão que, presumivelmente, governará até as eleições marcadas para 2014.
Técnico que trabalha na Comissão de Relações Exteriores do Congresso dos EUA escreveu por e-mail, ontem à noite, que não se surpreenderá se o governo Obama mostrar sinais de interesse pela “fórmula que Bashar apresentou no Teatro de Ópera de Damasco”, dada a realidade geopolítica na região, que está mudando muito rapidamente, e dado o impasse militar que se vê em campo, na Síria. São duas evidências que já sugerem fortemente que não restarão muitas alternativas ao novo governo Obama, porque não há qualquer possibilidade realista de o regime Bashar ‘render-se’, jogar a toalha, entrar ‘em colapso’ ou ser vencido, no curto prazo.
Meu correspondente, que trabalha no setor de questões EUA-Oriente Médio, crê também que o novo secretário de Estado John Kerrey e o provável novo secretário de Defesa Chuck Hagel – que enfrentarão dura batalha para serem aprovados no Senado, mas que, sim, provavelmente serão aprovados, operam também nessa nova linha em que o governo Obama começa a investir.
Fato é que, diferente do presidente Assad, que apresentou um plano, um dos líderes da chamada ‘oposição’, George Sabra, nada encontrou para propor, que encaminhasse qualquer solução para a atual crise. Sabra só soube dizer que “Absolutamente não se considera qualquer possibilidade de diálogo com esse regime, de forma alguma. Não é uma possibilidade. Está fora de questão.”
É possível que a chamada “comunidade internacional” já esteja começando a considerar outra saída, melhor que essa, para a questão síria.
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[1] [1] SHAKESPEARE, Julio Cesar, ato 3, cena 2. Fala Brutus, depois de ter assassinado Julio Cesar. Antes, na mesma fala, Brutus disse: “Se houver alguém nesta reunião, algum amigo afetuoso de César, dir-lhe-ei que o amor que eu [Brutus] dedicava a César não era menor do que o dele. E se esse amigo, então, perguntar por que motivo levantei-me contra César, eis minhas resposta: não foi por amar menos a César, mas por amar mais a Roma. Que teríeis preferido: que César continuasse com vida e vós todos morrêsseis como escravos, ou que ele morresse, para que todos vivêsseis como homens livres? Por haver amado César, pranteio-o; por ter sido ele feliz, alegro-me; por ter sido valente, honro-o; mas por ter sido ambicioso, matei-o. Logo: lágrimas para a sua amizade, alegria para sua fortuna, honra para o seu valor e morte para a sua ambição” (em português, em http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/william-shakespeare/julio-cesar-3.php) [NTs].
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