Fernando Morais: Uma justiça política no Brasil? - Portal Vermelho
Quase dez anos depois da eleição do presidente Lula, primeiro operário a chegar ao poder no Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) do país deve pronunciar-se sobre a Ação Penal 470. Este assunto, denominado pela imprensa como “mensalão”, é apresentado como o “maior escândalo de corrupção do governo de Lula”.
Por Fernando Morais
Se a pressa por julgá-lo em um ano eleitoral já era algo estranho, seu desenvolvimento até o dia de hoje é muito preocupante. Trata-se realmente de um processo de forte dimensão política, e cujas premissas parecem ignorar as garantias constitucionais que estão na base de um Estado de direito democrático.
Recordemos este episódio da história recente do Brasil. Em junho de 2005, Roberto Jefferson, ex- deputado do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), um dos partidos da coalizão no poder, acusou o governo de Lula, na pessoa do ministro da Casa Civil, José Dirceu – ex-guerrilheiro que saiu da prisão em 1969 em troca da libertação do embaixador estadunidense Charles Burke Elbrick–, de ter pago mensalmente 30 mil reais a deputados de partidos membros da coalizão.
Tratava-se de comprar votos para assim garantir que o Congresso aprovasse, em 2003, importantes medidas como as reformas tributária e da Previdência Social.
A acusação de Jefferson, formulada com refinamento teatral e estudada por três comissões de inquérito do Congresso, não permitiu provar a compra de votos. Contudo, fez o governo cambalear em seu terceiro ano de mandato e esteve a ponto de pôr em perigo seus avanços sociais e econômicos. Uma parte dos meios de comunicação, que estava descontente com a vitória do candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) no final de 2002, pediu então a destituição do presidente Lula. Vendo-se atacado, o governo reagiu. Lula foi reeleito em 2006 e terminou seu mandato com o índice de aprovação popular mais elevado da história brasileira e elegeu Dilma Rousseff como sua sucessora.
Entretanto, o PT, reconheceu em 2005, que realmente houve o pagamento de dinheiro vivo, mas com a finalidade de pagar as dívidas da campanha, assim como as dos partidos aliados: o PTB (ao qual pertencia Jefferson), o PL (partido do ex-vice-presidente José Alencar), o Partido do Movimento Democrático Brasileiro e o Partido Progressista. Tratava-se de acordos eleitorais pactuados em 2002, e que se prolongaram até as eleições municipais de 2004. Para permitir os pagamentos, o tesoureiro do partido recorreu ao mesmo modus operandi que o do publicitário Marcos Valério, em 1998, para ajudar o Partido da Social Democracia Brasileira (partido da oposição) a arrecadar fundos em Minas Gerais, o terceiro maior estado do Brasil.
Contudo, o estratagema financeiro operado para pagar as dívidas da campanha em nenhum momento implicava desembolsos individuais a parlamentares com a finalidade de assegurar seus votos a favor do governo. O próprio Jefferson, acusado no marco deste assunto de ter recebido quatro milhões de reais por conta do PTB, declarou que o destino destes fundos era o pagamento de dívidas. Por outro lado, um simples estudo estatístico mostra que não existiu correlação entre as datas dos pagamentos de fundos nas agências bancárias e os votos no Congresso. Pelo contrário, assistiu-se a um movimento inverso: o apoio ao governo diminuiu conforme amentava o volume das transferências. Entretanto, a sombra do “mensalão”, que paira sobre este processo, supostamente provaria que o governo foi complacente com a corrupção.
Pouco tempo depois, o Procurador Geral da República acusou 40 pessoas por sua implicação neste escândalo. Entre elas havia políticos, homens de negócios, banqueiros e pessoal de nível inferior das empresas envolvidas. O STF admitiu a acusação argumentando que os elementos de prova deveriam ser objeto de um procedimento contraditório e o processo acumulou, em cinco anos, mais de 50 mil páginas. Levou-se a cabo a oitiva de cerca de seiscentos testemunhos dentro e fora do Brasil.
Desde agosto de 2012, com o início do julgamento, a pressão política aumentou. As sessões do STF começaram a causar um abalo político no Brasil. Em particular dentro da oposição e entre os meios de comunicação que, com o aval da justiça, sonham com enlamear os avanços dos oito anos de governo de Lula. Neste contexto político – com a perspectiva das eleições presidenciais de 2014 e 2018 como pano de fundo -, há razões para preocupar-se com o respeito às garantias constitucionais.
Peço humildemente ao STF do Brasil que explique por que as primeiras condenações anunciadas suscitam, cada dia mais, um sentimento latente de inquietação entre os intelectuais e os meios jurídicos brasileiros. Alguns afirmam que os votos emitidos até o presente equivalem a reescrever o Código Penal. Posto que esta reescrita emana da mais alta jurisdição brasileira, vemos criar-se uma jurisprudência não suscetível de apelação. Inclusive antes do julgamento definitivo da Ação Penal 470, seus efeitos já começaram a se fazer sentir em sentenças penais emitidas em primeira instância. Três garantias constitucionais parecem ser objeto de escárnio: o princípio do contraditório, a presunção da inocência e a necessidade de justificação das decisões judiciais.
O princípio do contraditório exige que as provas juntadas durante a fase de investigação – igualmente às três comissões parlamentares que investigaram a acusação de Jefferson em 2005 – sejam validadas perante a Corte, quando os fatos são analisados em presença de juízes, advogados e promotores. Todos têm a obrigação de dizer a verdade sob o risco de ter que responder por um delito de perjúrio. Nas comissões parlamentares, como bem sabemos, o que predomina é a retórica e o efeito das declarações no jogo político.
Durante o julgamento do “mensalão”, são recorrentes as declarações de testemunhas que ainda se situam na fase anterior. É certo que podem servir de referência, mas nunca de elemento central para uma condenação, e menos ainda quando os testemunhos examinados minuciosamente, no que se refere ao contraditório, dizem o contrário da acusação inicial ou lançam dúvida sobre ela.
O juiz deve examinar necessariamente as provas juntadas pela defesa e não pode aceitar cegamente a versão da acusação. Cabe a ele analisar e refletir sobre os elementos de prova apresentados pela defesa para refutar os indícios alegados pela acusação. E, na continuidade, deve justificar a escolha da validade de uns em detrimento dos outros. É a garantia da motivação das decisões.
Por muito forte que seja a vontade do juiz de punir este delito –como parece ser a posição do ministro relator –, sempre se deveria ter presente a presunção da inocência. Esta proíbe que se reconheça a culpabilidade sobre a base da simples suspeita ou da presunção de responsabilidade. Outrora, os magistrados do STF defenderam amplamente esta garantia constitucional.
Mais uma vez, assistimos a uma atenuação aparente destes princípios no julgamento do “mensalão”. Durante uma sessão plenária já se afirmou que, nos casos dos acusados de grau mais elevado, deviam ser aceitas provas mais flexíveis para pronunciar uma condenação. E isso na medida em que quanto mais alta é a posição na hierarquia, mais difícil é encontrar rastros de atividade delituosa.
As sessões apresentaram igualmente a questão do ônus da prova. Não há dúvida de que cabe à acusação provar a culpabilidade e não ao acusado provar sua inocência. Outro tema inquietante: o in dubio pro reo, garantia secular da justiça nos assuntos criminais, é igualmente objeto de discussão. A dúvida deve conduzir à declaração de inocência e não à condenação, como diz a sabedoria jurídica. A discussão voltou a se centrar neste princípio porque o Supremo Tribunal Federal é um órgão colegiado de onze magistrados dos quais um acaba de aposentar-se. Com dez, aumenta a possibilidade de que os votos se dividam. Alguns defendem que o princípio in dubio pro reo não é válido para este caso na medida em que o presidente do Tribunal tem voto qualificado.
Afortunadamente, quando lhes apresentamos a questão, os magistrados declararam querer reforçar a defesa das garantias constitucionais. Um deles, no momento de declarar inocente uma das pessoas acusadas, precisou que sua decisão se baseava na dúvida. “Mais vale dez culpados em liberdade do que um inocente na prisão, afirmou, recordando um exemplo clássico utilizado na universidade para tratar a premissa in dubio pro reo.
Contudo, tais atenuantes, já constatados em premissas ou em votos, são inquietantes porque enviam um sinal muito claro: o julgamento deveria servir de exemplo na luta contra a corrupção. De maneira mais precisa, trata-se de acusar o governo de Lula de ter montado uma organização criminosa sofisticada para manter-se no poder. O procurador geral da República, em suas conclusões, pede explicitamente “a condenação dos acusados para que sirva de exemplo”.
Parece evidente que, salvo que se tomem algumas liberdades com as garantias constitucionais, seria difícil provar a culpabilidade do suposto “núcleo político” dirigido pelo ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu. O procurador geral da República denuncia como “chefe do bando e cérebro do sistema de corrupção” aquele que o presidente Lula considerou “capitão do time”. Com efeito, um esquema criminoso tão sofisticado necessita de um grande responsável. O cenário elaborado pela acusação e até agora aprovado por um grande número de magistrados do STF, somente terá consistência e status de “exemplo da luta contra a corrupção” se o principal acusado for condenado. Contudo, o próprio procurador geral, Roberto Gurgel, reconheceu que as provas contra o ex-ministro são “frágeis”. É preciso condená-lo então “pelo conjunto das ações e provas” que levem a demonstrar que ele tinha o “controle supremo sobre os fatos”. Como temos visto, unicamente o não respeito às premissas constitucionais permitiria um resultado assim.
Por sua parte, a defesa de José Dirceu apresentou dezenas de testemunhos, examinados minuciosamente no que se refere ao contraditório, que derrubam as débeis acusações contra o ex- ministro e que provam sua inocência na medida em que ele desconhecia as soluções financeiras encontradas por seu partido para pagar as dívidas e cumprir os acordos eleitorais. Não se trata aqui de defender práticas ilícitas que, se são provadas nos marcos do princípio do contraditório, devem ser punidas de acordo com a lei. Mas que exemplo daria o Supremo Tribunal à sociedade brasileira se a condenação exemplar reclamada só for possível pela ausência de garantias tão fundamentais para qualquer cidadão?
Nas poucas semanas que restam para que termine o julgamento, é necessário reforçar a confiança na preservação do Estado de direito democrático e na seriedade dos magistrados do STF, que devem ser conscientes de que o Brasil vive um momento histórico. Julgam e eles mesmos são julgados. E mais do que uma referência no combate à corrupção, o que está em jogo é o respeito à Constituição e às garantias de todos os cidadãos, os de hoje e, muito especialmente, os de amanhã. A decisão do Supremo Tribunal não só valerá para os 38 acusados da Ação Penal 470, mas igualmente para todos os brasileiros: as pessoas do povo. Tanto para aqueles que cometeram realmente um delito como para os que estão simplesmente acusados sobre a base de “provas frágeis”.
Fernando Morais é jornalista e escritor.
Este artigo foi publicado originalmente em francês e depois em espanhol no jornal Le Monde Diplomatique. O Vermelho publica a versão inédita em português, cedida especialmente pelo autor.
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