Feroz, fraco e doido
Manuel Domingos Neto*
Publicado por waltersorrentino em 02/02/2013
Leitura Recomendada
Feroz, fraco e doido (Para o jornal “O Povo”, Fortaleza, 03.02.2013)
Os impérios modernos começaram a despontar depois que os europeus aprenderam a navegar longas distâncias e a usar a pólvora para matar. Enquanto lutavam entre si, esticaram o braço sobre os quatro cantos do mundo. Genocídio, escravidão, aniquilamento de civilizações, agressão ambiental e retórica hipócrita estiveram no cerne de sua feroz e amalucada disputa por rotas comerciais, especiarias e matérias primas. A fragilidade da dominação europeia passou a ser evidenciada no desmonte do sistema colonial nas Américas e prosseguiria após as guerras mundiais, quando africanos e asiáticos derrotaram exércitos poderosos. Mesmo depois de um Estado eurasiano simbolizar para muitos a esperança de progresso social e de uma ex-colônia britânica assumir a hegemonia mundial, a autoproclamada superioridade europeia sobreviveria. A Europa ficou como promotora da civilização moderna e os Estados Unidos como continuadores de sua obra. É impossível contabilizar os mortos em guerras movidas por tais civilizadores. Contam-se em centenas de milhões. Mas a capacidade de matar não leva necessariamente à vitória. A fraqueza de exércitos bem equipados e treinados seria demonstrada por vietcongues, chineses, argelinos, cubanos, afegãos, angolanos, enfim, por povos sem tecnologia de ponta, mas com vontade libertária e liderança política articulada. Essas elementaridades me ocorrem quando leio as notícias sobre o envio de franceses ao Mali para garantir o controle das reservas de urânio do Níger e dos recursos energéticos da África setentrional. Trata-se de brecar a ofensiva chinesa. Entre 2002 e 2008, o comércio da África com a China passou de 10 bilhões para 107 bilhões de dólares, arrepiando as potências ocidentais. Hoje, a África fornece 1/3 das necessidades energéticas chinesas; os EUA preveem que, já em 2015, cerca de 25% de seu consumo seja suprido pelo petróleo africano. A África tem muitas riquezas, mas a sede do capital não tem limites. Por que os franceses e não os norte-americanos invadiram o Mali? Alguns acreditam que o governo de Barack Obama estaria renunciando ao papel de polícia global. O fato é que, em tempo de crise, sufocado pela dívida pública e amargando o desgaste de guerras infindáveis contra inimigos militarmente inferiores, o Pentágono adota novo proceder: evita o envio de tropas, contrata mercenários e projeta a instalação, em 35 países africanos, de pequenas bases para treinar nativos. Essas bases foram concebidas para se expandirem rapidamente em caso de necessidade. Quanto ao engajamento militar francês, registre-se que, de todas as velhas potências coloniais europeias, a França é a mais preocupada com a preservação de seus interesses no território africano, notadamente na costa atlântica, como se depreende dos documentos que definem oficialmente a orientação estratégica francesa. Sejam quais forem os artifícios para a intromissão na África, a perspectiva é de aprofundamento da instabilidade política e de insegurança para os negócios. Portanto, uma perspectiva de derrota para as potências ocidentais. O mapa político africano, desenhado a partir do desmonte do sistema colonial, basta para compreender que os dominadores adubaram a instabilidade ao impor territorialidades desrespeitando etnias, culturas, inimizades ancestrais e especificidades ambientais. Tome-se o próprio caso do Mali como exemplo de insensatez estratégica. Com 1.240.000 km², o atual território maliense sediou no passado impérios que controlavam o comércio no Saara. No final do século XIX, seus habitantes, à força de baionetas, integrariam o Sudão francês, e em meados do século passado seriam temporariamente unidos ao Senegal. Desde a independência, conquistada em 1960, o Mali tem governantes alçados pela força bruta. O único dirigente eleito, Alpha Konaré, governou entre 1992 e 2002. Entre os grupos étnicos do Mali, um dos menores, o tuaregue, foi o grande responsável pela rebelião que, no ano passado, dominou o vasto território fronteiriço à Argélia e ao Níger. Esse grupo seminômade, meio animista, meio islâmico, com homens cobertos de pano (só mostram os olhos) para se proteger do sol, da areia e dos maus espíritos, resiste há séculos à ocidentalização. Sua mobilização atual resulta da invasão da Líbia e do assassinato de Kadafi, astucioso articulador de certo equilíbrio de forças na região. Invadindo o Mali, a França tenta conter um efeito da desastrada caça ao dirigente líbio, da qual bobamente se vangloriou e pela qual hoje cobra caro aos desmoralizados e nada confiáveis novos governantes. Não há hipótese de vitória, por mais que as potentes armas francesas massacrem os tuaregues e seus aliados. Os soldados invasores voltarão sem garbo para casa depois de demonstrar ferocidade e fraqueza nas areias do deserto. Antes disso, agravarão a crise europeia. Quem pode levar alguma vantagem nessa aventura truculenta é a indústria francesa de armamento, que, aliás, sempre teve na África um bom campo de experimentação e muitos fregueses. François Hollande põe em risco seu capital político e abre cancha para o retorno da extrema direita. É intrigante que não tenha aproveitado os ensinamentos da coligação liderada pelos Estados Unidos nas paragens afegãs. Em vez de matar africanos em busca de urânio e petróleo, melhor faria o socialista se dedicando à mudança da insustentável matriz energética de seu país. É possível captar os fundamentos da disposição guerreira do presidente francês lembrando uma das figuras que enaltece como paradigma de político, Jules Ferry, o positivista que tornou o ensino primário obrigatório na França no final do século XIX. Que ensino? Em 1885, diante da Câmara dos Deputados, Ferry discursou: “As raças superiores têm o dever de civilizar as raças inferiores”! Ao saber que a maioria dos franceses está apoiando a invasão do Mali, vejo o quanto Ferry persiste influente. Em tempo: roubei o título deste artigo de uma análise de George Friedman (Ferocious, weak and crazy) sobre a estratégia da Coréia do Norte. Friedman dirige um conhecido escritório de análises estratégicas sediado no Texas e tem a mania de só apontar predicados negativos nos “outros”.
* Professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, Coordenador do Observatório das Nacionalidades.
Feroz, fraco e doido (Para o jornal “O Povo”, Fortaleza, 03.02.2013)
Os impérios modernos começaram a despontar depois que os europeus aprenderam a navegar longas distâncias e a usar a pólvora para matar. Enquanto lutavam entre si, esticaram o braço sobre os quatro cantos do mundo. Genocídio, escravidão, aniquilamento de civilizações, agressão ambiental e retórica hipócrita estiveram no cerne de sua feroz e amalucada disputa por rotas comerciais, especiarias e matérias primas. A fragilidade da dominação europeia passou a ser evidenciada no desmonte do sistema colonial nas Américas e prosseguiria após as guerras mundiais, quando africanos e asiáticos derrotaram exércitos poderosos. Mesmo depois de um Estado eurasiano simbolizar para muitos a esperança de progresso social e de uma ex-colônia britânica assumir a hegemonia mundial, a autoproclamada superioridade europeia sobreviveria. A Europa ficou como promotora da civilização moderna e os Estados Unidos como continuadores de sua obra. É impossível contabilizar os mortos em guerras movidas por tais civilizadores. Contam-se em centenas de milhões. Mas a capacidade de matar não leva necessariamente à vitória. A fraqueza de exércitos bem equipados e treinados seria demonstrada por vietcongues, chineses, argelinos, cubanos, afegãos, angolanos, enfim, por povos sem tecnologia de ponta, mas com vontade libertária e liderança política articulada. Essas elementaridades me ocorrem quando leio as notícias sobre o envio de franceses ao Mali para garantir o controle das reservas de urânio do Níger e dos recursos energéticos da África setentrional. Trata-se de brecar a ofensiva chinesa. Entre 2002 e 2008, o comércio da África com a China passou de 10 bilhões para 107 bilhões de dólares, arrepiando as potências ocidentais. Hoje, a África fornece 1/3 das necessidades energéticas chinesas; os EUA preveem que, já em 2015, cerca de 25% de seu consumo seja suprido pelo petróleo africano. A África tem muitas riquezas, mas a sede do capital não tem limites. Por que os franceses e não os norte-americanos invadiram o Mali? Alguns acreditam que o governo de Barack Obama estaria renunciando ao papel de polícia global. O fato é que, em tempo de crise, sufocado pela dívida pública e amargando o desgaste de guerras infindáveis contra inimigos militarmente inferiores, o Pentágono adota novo proceder: evita o envio de tropas, contrata mercenários e projeta a instalação, em 35 países africanos, de pequenas bases para treinar nativos. Essas bases foram concebidas para se expandirem rapidamente em caso de necessidade. Quanto ao engajamento militar francês, registre-se que, de todas as velhas potências coloniais europeias, a França é a mais preocupada com a preservação de seus interesses no território africano, notadamente na costa atlântica, como se depreende dos documentos que definem oficialmente a orientação estratégica francesa. Sejam quais forem os artifícios para a intromissão na África, a perspectiva é de aprofundamento da instabilidade política e de insegurança para os negócios. Portanto, uma perspectiva de derrota para as potências ocidentais. O mapa político africano, desenhado a partir do desmonte do sistema colonial, basta para compreender que os dominadores adubaram a instabilidade ao impor territorialidades desrespeitando etnias, culturas, inimizades ancestrais e especificidades ambientais. Tome-se o próprio caso do Mali como exemplo de insensatez estratégica. Com 1.240.000 km², o atual território maliense sediou no passado impérios que controlavam o comércio no Saara. No final do século XIX, seus habitantes, à força de baionetas, integrariam o Sudão francês, e em meados do século passado seriam temporariamente unidos ao Senegal. Desde a independência, conquistada em 1960, o Mali tem governantes alçados pela força bruta. O único dirigente eleito, Alpha Konaré, governou entre 1992 e 2002. Entre os grupos étnicos do Mali, um dos menores, o tuaregue, foi o grande responsável pela rebelião que, no ano passado, dominou o vasto território fronteiriço à Argélia e ao Níger. Esse grupo seminômade, meio animista, meio islâmico, com homens cobertos de pano (só mostram os olhos) para se proteger do sol, da areia e dos maus espíritos, resiste há séculos à ocidentalização. Sua mobilização atual resulta da invasão da Líbia e do assassinato de Kadafi, astucioso articulador de certo equilíbrio de forças na região. Invadindo o Mali, a França tenta conter um efeito da desastrada caça ao dirigente líbio, da qual bobamente se vangloriou e pela qual hoje cobra caro aos desmoralizados e nada confiáveis novos governantes. Não há hipótese de vitória, por mais que as potentes armas francesas massacrem os tuaregues e seus aliados. Os soldados invasores voltarão sem garbo para casa depois de demonstrar ferocidade e fraqueza nas areias do deserto. Antes disso, agravarão a crise europeia. Quem pode levar alguma vantagem nessa aventura truculenta é a indústria francesa de armamento, que, aliás, sempre teve na África um bom campo de experimentação e muitos fregueses. François Hollande põe em risco seu capital político e abre cancha para o retorno da extrema direita. É intrigante que não tenha aproveitado os ensinamentos da coligação liderada pelos Estados Unidos nas paragens afegãs. Em vez de matar africanos em busca de urânio e petróleo, melhor faria o socialista se dedicando à mudança da insustentável matriz energética de seu país. É possível captar os fundamentos da disposição guerreira do presidente francês lembrando uma das figuras que enaltece como paradigma de político, Jules Ferry, o positivista que tornou o ensino primário obrigatório na França no final do século XIX. Que ensino? Em 1885, diante da Câmara dos Deputados, Ferry discursou: “As raças superiores têm o dever de civilizar as raças inferiores”! Ao saber que a maioria dos franceses está apoiando a invasão do Mali, vejo o quanto Ferry persiste influente. Em tempo: roubei o título deste artigo de uma análise de George Friedman (Ferocious, weak and crazy) sobre a estratégia da Coréia do Norte. Friedman dirige um conhecido escritório de análises estratégicas sediado no Texas e tem a mania de só apontar predicados negativos nos “outros”.
* Professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, Coordenador do Observatório das Nacionalidades.
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