Sorrentino: Crise de representação e institucionalização da luta - PCdoB. O Partido do socialismo.Qualquer debate político atual – como o do 13º congresso – precisará incidir sobre o tema partido e a forma de torná-lo vivo é fazê-lo se confrontar com a realidade aguda que se manifestou nas ruas em junho, no Brasil, como também em muitas partes do mundo.
Por Walter Sorrentino*
Creio que dois temas sensíveis, que já estavam estabelecidos há tempos, são o da crise de representação política – que conduziria à crise da forma-partido – e a chamada institucionalização da luta política – como um risco ou desvio para a esquerda.
Se é para ir a algum fundamento da crise de representação, não há como desligá-la da crise estrutural capitalista. A lógica da reprodução do capital sob a hegemonia financeira, com a ideologia neoliberal, conduziu o mundo a tremenda crise financeira, econômica e social para trabalhadores, povos e nações. A questão é que as finanças e a mídia hegemônica, junto ao poder militar e das moedas fortes, se tornaram os verdadeiros poderes da sociedade, de tal monta que capturam a política – partidos e representantes dependem cada vez mais deles, seja em financiamento aberto ou escuso. Daí a política como espetáculo, desnaturando-a como a forma mais elevada da consciência social, promovendo e refletindo a crescente alienação na sociedade. A política se despolitiza, os partidos se tornam um ajuntamento, os políticos em muitos casos se venalizam.
No caso brasileiro, historicamente, isso se reforça com a tradição patrimonialista e clientelista na política, de difícil remissão. Alimenta o sentimento de que, entre nós, nada valeu, ou seja, tudo foram transições por cima, sem participação popular, portanto conservadoras. É uma verdadeira ironia: justamente a esquerda, cujos partidos tanto deram ao longo de décadas para democratizar, alcançar mais justiça social e soberania nacional, autonegam o resultado de seu esforço. Com isso, desmotivam o próprio povo que, esse sim, compreende bem como se alcançaram as conquistas com muito sofrimento e luta. E as forças conscientes não se dão conta da singularidade da experiência brasileira: transições prolongadas, sob a forma de movimentos que unem espectro improvável (à primeira vista) de forças sociais e políticas. Mas, em qualquer caso, sempre fermentadas por forças-partidos políticos com ideais definidos.
O fato parece ser que a crise de representação, de bases reais como vimos, é mais bem um argumento a mais para desmoralizar a política e os partidos políticos na luta de ideias. Dão ensejo crescente a manifestações espontâneas, que não podem deixar de se repor a cada situação histórica em face da opressão, exploração e alienação da sociedade capitalista. O espontâneo não deve assustar ninguém com autênticos ideais de mudança e revolução. O que deve preocupar é a pregação do espontaneísmo como forma de luta. Não só porque ineficaz, ao fim e ao cabo, mas por consistir num perigo para a democracia, na medida em que leva água para o moinho da negação da política. Goste-se ou não, partidos políticos nos marcos dos Estados-nação seguem sendo os instrumentos necessários e menos ou mais eficazes para as mudanças sociais; nada se inventou ainda que os supere. Esse é um tema em torno do qual se deve demarcar campos, sem contemplação, se de fato lutamos por uma democracia mais vigorosa. E, claro, no Brasil, onde alcançamos alguns importantes resultados históricos democráticos, seria necessário barrar o dinheiro privado corporativo no financiamento eleitoral.
Há um parentesco muito visceral entre essa chamada crise de representação e a crítica à “institucionalização” da luta política, sobretudo na perspectiva da esquerda. Ponho o termo entre aspas porque, no caso, confunde. A institucionalização é argumento central na ciência política para expressar – como o fez o clássico Michels, retomado mais recentemente por Gorender – de que a burocratização dos partidos (inclusive de esquerda) é fenômenos inevitável e inexorável, opondo dirigentes e dirigidos no seu interior, a formação das castas partidárias. Muito já se escreveu sobre essa pretensa inevitabilidade... Usar o mesmo termo para a crítica da participação da esquerda na luta eleitoral e participação em governos – ou mesmo centro de governos – não é apropriado. Sobressai então outro caráter da crítica: a prioridade à “luta institucional”, aliás bem presente no debate dos comunistas no 13º Congresso.
Não julgo apropriada também essa segunda acepção do termo “luta institucional”. Na realidade política atual, a luta eleitoral adquire centralidade nos termos das disputas e das correlações de forças políticas. Implicam, nos casos de vitórias das forças populares, alcançar poderes de Estado que são postos a serviço – menos ou mais – das mudanças em patamar mais elevado e com resultados concretos na vida do povo. Foi assim em vários países da América Latina, incluindo o Brasil do último e inédito decênio. São formas da luta política de classes que, a rigor, não se inventam nem se escolhem.
Quem busca fazer uma crítica a essas opções políticas não deveria despolitizar o debate, portanto, mas confrontar as opções derivadas da leitura da realidade política e da estratégia transformadora. Menos ainda pôr a questão em contradição antagônica com a luta social. Porque tanto a luta eleitoral e participação em governos, como as principais estruturas da luta dos movimentos sociais, são institucionalizadas, ou seja, têm por substrato instituições – partidos, sindicatos, entidades nacionais etc. Que ninguém se iluda: mesmo as ONGs são institucionalizadas, dependem de financiamento, têm direção, estratégias, centros de comando (e muitas vezes tudo isso depende até de interesses e financiamento estrangeiro nada desinteressado). Aliás a vida é impagável: há “movimentos sociais” atuando como verdadeiros partidos...
No fundo, o que se precisa, tanto na luta política eleitoral, participações institucionais, na luta social e de ideias, é pô-las a serviço de um projeto de nação. Todas e cada uma precisam liderar o esforço para despertar no povo a fome espiritual para alcançar uma nação desenvolvida, soberana, democrática e de progresso social, mediante a luta política em cada uma daquelas frentes. E considerar que cada uma delas – a luta política, social e de ideias – não são raias independentes, que não se comunicam, mas uma única via para acumular forças no rumo de um projeto de nação. No fundo, para um projeto transformador, o que se precisa não é apenas de mais luta sindical ou comunitária, entre outros, mas nelas atuar com uma perspectiva maior, política, de um projeto transformador. Diria mesmo que os próprios movimentos sociais precisam de mais política, inclusive para eleger eles próprios mais representantes de cada frente.
Como se vê, julgo haver alguma confusão conceitual nos debates em torno dessa matéria. Nada exime, no entanto, do necessário debate crítico para confrontar desvios, insuficiências ou deficiências de um problema real para a esquerda, qual seja, o de unilateralizar conscientemente ou não a acumulação de forças na luta eleitoral ou de participação em governos. Inclusive esse é um debate muito necessário no PCdoB, para chegarmos a um juízo coletivo mais sóbrio, menos simplista ou escapista. No fundo, tal prática é um tiro no pé, caminho falso, na medida em que não se puser em movimento as forças motrizes fundamentais para o projeto de esquerda – os trabalhadores, o povo, juventude, mulheres, intelectuais progressistas - e se não se as armar com um projeto avançado e exequível, construído na luta de ideias.
Não tenho pretensão de estar certo, mas apenas indicar como o debate sobre o tema partido pode ser muito vivo e atual, dialogar com o sentimento (negativo) das ruas e não ser apenas interno ao PCdoB de modo autoreferido.
Walter Sorrentino é secretario nacional de Organização do PCdoB.
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