No Mato Grosso do Sul, o que tem chamado atenção é a dimensão do problema e o grau de acirramento dos conflitos. De um lado, o pujante agronegócio, movido pelo plantio de cana-de-açúcar, soja e milho e pela extensiva criação de gado; de outro, mais de 40 mil índios da grande etnia guarani, subdividida entre os grupos étnicos guarani-kaiowá (predominante) e guarani-ñandéva (minoritária) e alguns poucos da etnia terena, habitando fragmentos de terra, isolados e dispersos em aproximadamente 69 áreas, que incluem 36 acampamentos em condições subumanas.
O Mato Grosso do Sul é o único estado brasileiro em que permanecem conflitos históricos envolvendo terras indígenas. Nos demais, apesar de graves, são circunstanciais. Os processos de demarcação e homologação de terras indígenas são emperrados por ações judiciais impetradas por ricos escritórios de advocacia em nome do agronegócio. As terras dos povos guaranis não representam nem 1% do território do estado, que tem a segunda maior população indígena do país, com mais de 73 mil indivíduos em nove etnias.
A raiz dos conflitos com os guaranis remonta ao final da Guerra do Paraguai, quando teve início a ocupação de seu território por diversas frentes de exploração econômica, no então estado de Mato Grosso. O processo de povoamento da região foi alicerçado na política de ocupação das fronteiras a partir de atividades produtivas em grandes fazendas de erva mate e da proletarização dos “bárbaros silvícolas”, tarefa atribuída ao antigo SPI, antecessor da Funai e concebido sob a sigla SPILTN – Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais.
Obviamente, o processo desastroso de incorporação dos guaranis à chamada “comunidade nacional” não se deu de forma pacífica, mas a partir de intenso derramamento de sangue. Os índios somente se submeteram após violento etnocídio e espoliação de suas terras, numa trágica sucessão que se perpetua e se agrava até os dias de hoje. O deslocamento temporário para as frentes de trabalho é apontado por especialistas e pelas próprias famílias indígenas como fator de impedimento da organização social dos povos guaranis.
A solução encontrada pelo Estado foi a criação de reservas que, na verdade, tornaram-se verdadeiros guetos, em que os índios foram despejados e disponibilizados como mão de obra agrícola. Populações que, durante séculos, sustentavam-se com abundância foram transformadas em dependentes do fornecimento de alimentos e vulneráveis a doenças decorrentes da fome, da subnutrição, do alcoolismo e outras drogas. Seu confinamento viabilizou a instalação do agronegócio: cana, soja, gado, eucalipto e milho em parceria (insumos, apoio tecnológico e, muitas vezes, financiamento) com multinacionais como Bunge, Cargill, ADM e Monsanto.
A dispersão, desconexão e devastação dos territórios guaranis os impedem de reproduzir tanto sua subsistência quanto sua cultura. Na cosmologia guarani, tais espaços denominam-se tekoha ou “lugar onde vivemos do nosso jeito”. A referência constante a esse “jeito de ser guarani” caracteriza a ação indígena não apenas como um movimento político, mas como resistência simbólica à imposição do estilo de vida dos karaí (brancos).
A dimensão religiosa é fundamental na luta pela reconquista de seus territórios. Ñanderú (xamã masculino) e ñandesy (xamã feminino) estão sempre presentes em todo ato público, dando uma dimensão profética à busca da “terra sem males” ou o retorno à fartura e alegria de outros tempos. Compreender o conceito de tekoha é entender a formação e configuração dos acampamentos, que em geral situam-se próximos às poucas áreas de mata nativa restantes na região e na proximidade de antigos cemitérios indígenas. O choque entre a dimensão mística do tekoha e o capital resulta em sangue derramado do lado mais frágil.
Segundo o Conselho Indigenista Missionário – Cimi, nos últimos oito anos cerca de 200 indígenas foram mortos em conflitos pela terra, ao passo que o agronegócio cresce em ritmo galopante, na cifra dos bilhões. A reação dos guaranis para recuperarem suas terras e seu teko (modo de ser e viver) organiza-se em torno do Aty Guasu (grande reunião), instância máxima de processo decisório do movimento indígena regional. Mas sem meios suficientes para impor uma agenda propositiva nos moldes de outros movimentos, como o dos sem-terra, por exemplo, dependem em grande parte do apoio da Funai, do MPF, do Cimi e alguns poucos indígenas politicamente articulados.
A situação a que chegou o conflito de terras no Mato Grosso do Sul é sintoma de um modelo econômico predatório de um lado e da ineficaz política indigenista brasileira, do outro. Não se pode definir a política indigenista brasileira apenas como resultado da atuação do órgão indigenista oficial, ainda que este tenha sido seu principal executor e depositário ideológico do regime de tutela a que foram submetidas diversas etnias durante os anos. O indigenismo brasileiro só podem ser avaliado a partir do desdobramento dos conflitos entre Estado, capital e direitos humanos. Em outras palavras, não se pode debitar na conta da Funai todos os males nem todas as soluções referentes aos povos indígenas no Brasil.
O drama dos guraranis (kaiowás e ñandévas) desnuda as contradições do desenvolvimentismo a todo custo. O crescimento econômico deve ser, antes de tudo, fruto da inter-relação indissociável entre democracia, justiça social e direitos humanos. Ao não assegurar de forma plena o direito das minorias étnicas, o Brasil perde credibilidade e se descredencia como referência global do ponto de vista civilizatório. Repete os mesmos erros de nações hegemônicas colonialistas e contribui para fortalecer o modelo excludente e opressor, do qual é vítima histórica, à custa de vidas de inocentes. Seja usando celulares e assistindo televisão, eles nada mais anseiam do que o direito de preservar sua cultura e de serem quem são: brasileiros.
Gustavo Guerreiro, mestre em sociologia, indigenista especializado e pesquisador do Observatório das Nacionalidades.
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