Não é uma questão moral ou de princípios, é uma questão técnica mesmo.
O Brasil, mesmo com um controle relativamente rígido sobre a venda de armas, é o país onde mais há mortes por armas de fogo no mundo. Segundo o Global Mortality from firearms, 1990 - 2016) , do Instituto de métricas e avaliação em saúde (Institute for Health Metrics and Evaluation) o país somou 43.200 morte, à frente dos EUA, com 37.200.
Os EUA são um país nascido de uma guerra popular de libertação, onde o povo armado foi fundamental para a vitória. Por isso a constituição, que é a mesma desde os tempos da independência, no sec. XVIII, garante o direito das pessoas à posse de armas, para os EUA, naquela época, era uma questão de defesa nacional.
Obviamente hoje os EUA não necessitam de milícias populares para garantir a segurança da nação, mas o direito à posse de armamentos já está de tal forma entranhado na cultura daquele país, que é muito difícil restringi-lo.
Mas sobre o Brasil, o que faz alguém pensar que mais armas em circulação vão diminuir a tragédia das mortes por armas de fogo?
É obvio que não existe nenhuma sustentação teórica ou empírica para isso. Então a única coisa que pode justificar tal política é o desejo individual de se auto proteger, ou seja, já que há uma guerra, que pelo menos eu entre armado nela.
É um sentimento justificável. O cidadão pensa: Não me interessam as estatísticas, não me interessa que mais pessoas morram, eu poderei me defender.
Há obviamente um problema. Manter as coisas como estão não é uma solução e as pessoas querem uma solução. A solução de tomar para si o direito à auto defesa é sem dúvida a mais simples.
Mas e quanto à eficácia disso do ponto de vista individual?
Armas em casa: Ter uma arma em casa ou no local de trabalho tem sim efeito dissuasivo. O criminoso sempre escolhe a opção mais fácil. Entre uma casa com cacos de vidros no muro e outra sem, ele escolhe a sem, entre uma casa com cacos de vidro no muro e outra com cerca elétrica ele escolhe a com cacos de vidro, e assim por diante. Portanto, ao saber que na casa ou comércio pode haver alguém armado, é muito provável que os criminosos evitem entrar nesses estabelecimentos. Por isso acho que os maiores apoiadores do armamento da população sejam os pequenos empresários.
Há a possibilidade de assaltantes entrarem nos estabelecimentos justamente para roubar as armas? Sim, há, mas certamente as pessoas avaliam, creio que corretamente e principalmente no caso dos comerciantes, que entre o risco de ser assaltado para roubarem sua arma e a quase certeza de serem assaltados para roubarem seu patrimônio, é melhor ficar com o primeiro.
O risco de uma criança pegar a arma do adulto em casa existe, mas os pais certamente acham que isso não vai acontecer com eles.
Armas na rua: O decreto do rearmamento, que flexibiliza a posse, não flexibiliza o porte. Mas alguém acha mesmo que todas essas armas compradas por "cidadãos de bem" ficarão quietinhas, guardadinhas nas casas e nos estabelecimentos comerciais? Alguém acha que muitas das milhões de armas adquiridas não vão ficar circulando por aí nas cinturas e nos veículos de seus donos? Alguém acha mesmo que em cada um dos milhares de botecos do país não vai haver pelo menos um "cidadão de bem" com a cara cheia de cachaça com um ferro na cinta? Alguém acha mesmo que essas armas circulando por aí não vão acabar caindo aos milhares nas mãos de bandidos? Alguém acha mesmo que não haverá uma chance enorme de que crianças vitimas de bulling levem as armas de seus pais para a escola e eventualmente dispararem a esmo, como ocorre frequentemente nos EUA? Alguém acha que não haverá aumento significativo de mulheres mortas por seus companheiros agressores, que agora disporão de uma arma sempre à mão?
Ou seja, uma aparente solução individual vai, certamente, se transformar num grande problema coletivo. Se nos EUA, um país com muito menos problemas sociais que o Brasil e onde já existe uma cultura secular de convívio com armas de fogo, já há um grave problema, imagina milhões de brasileiros eufóricos com seus novos brinquedos de matar, doidos pra exibi-los por aí.
Durante a maior parte da história da raça humana os homens tiveram que se defender com as próprias mãos e usando as armas de que dispunha, até que as pessoas perceberam que dessa forma jamais poderiam viver em paz e criaram o estado, abrindo mão do direito à justiça privada e entregando o monopólio da justiça e da própria violência a esse mesmo estado. Ou seja, as pessoas abriam mão de parte de sua liberdade para poderem viver todas em um ambiente mais pacífico e previsível.
O fato de o Brasil estar sofrendo essa verdadeira regressão civilizacional é com certeza, motivo de tristeza e pelos motivos que coloquei acima, de grande preocupação.
ENTRETANTO NÃO BASTA DIZER: NÃO AO REARMAMENTO. Temos que reconhecer, com pesar, que essa lamentável medida não foi tomada sem que houvesse um verdadeiro clamor popular. O presidente da república foi eleito, aliás, tendo o rearmamento como uma das principais promessas de campanha, ou seja, o decreto do rearmamento possui inegável legitimidade popular.
Temos que admitir que o ESTADO BRASILEIRO FALHOU na sua missão mais básica, que é de mediador dos conflitos. As pessoas clamam pela PRIVATIZAÇÃO da sua própria segurança porque o estado se mostrou totalmente incompetente em fornecer esse serviço, que é, diga-se de passagem, o mais básico e primitivo serviço que um estado pode prestar.
O decreto do rearmamento, no caso do Brasil, é sintoma extremamente grave da falência do estado brasileiro.
Outros povos, em outras épocas já passaram por situações semelhantes, em que seus estados perderam a capacidade de mediar os conflitos da sociedades e por consequência a própria legitimidade. Quase sempre o resultado foi a revolução e a construção de um outro estado, mas não sem antes muito sofrimento, destruição e morte.
Antes de comemorar, os militares brasileiros deveriam refletir sobre isso. Como deter um povo em fúria e armado? Momentos de crise institucional já vivemos vários, mas desde a república nunca vivemos enfrentamentos armados em larga escala.
A mim parece um contra senso que militares, sejam das FFAA ou das forças auxiliares, comemorem o rearmamento. Além do aumento do risco pessoal deles, estão abrindo mão de um monopólio, que é o do uso da força e mais, estão colocando em risco a existência do próprio estado a que servem.
Sou um revolucionário, defendo a substituição deste estado burguês por outro, dirigido pelos trabalhadores, então deveria comemorar a medida, pois é obvio que um povo armado tem muito mais condições de tomar o poder. Mas, sinceramente, acho que a melhor maneira de disputar o poder é pela via democrática e institucional.
Tendo em vista a atual correlação de forças internacional temo mesmo que possamos estar entrando numa perigosa armadilha que coloca em risco a própria unidade nacional. Guerra civil na Ucrânia, no Iemên e a terrível guerra civil na Síria deveriam nos servir de advertência. O Brasil é um país grande demais, rico demais e a sua desintegração interessa a muitas potências.
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