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domingo, 3 de agosto de 2014

As chances do Hamás 1/8/2014, Nathan Thrall, London Review of Books, vol. 36, n. 16. 21/8/2014, p. 10 - - Coletivo Vila Vudu



A guerra em curso em Gaza não foi guerra que Israel ou o Hamás tenham buscado. Mas os dois lados sabiam com certeza absoluta que um novo confronto viria. O cessar-fogo de 21/11/2012, que pôs fim a oito dias de fogo, foguetes de Gaza contra Israel e bombardeio aéreo de Israel contra Gaza, jamais foi implementado. Aquele acordo estipulava que todas as facções palestinas em Gaza suspenderiam as hostilidades contra Israel e que Israel suspenderia todos os ataques contra Gaza por terra, mar e ar – inclusive o ‘alvejamento de indivíduos’ (assassinatos, quase sempre por mísseis disparados de drones manobrados à distância) –, e que o cerco de Gaza acabaria, dado que Israel aceitou, por aquele acordo de 2012, “abrir as passagens e facilitar o deslocamento de pessoas e transferência de produtos, pondo fim a qualquer medida que restrinja a livre movimentação de residentes e ao alvejamento de residentes em áreas de fronteira.”  

Uma cláusula adicional registrava que “outras questões que venham a exigir discussão serão discutidas” – que parece fazer referência ao envolvimento, acordado privadamente com Egito e EUA, para ajudarem a pôr fim ao contrabando de armas para Gaza, embora o Hamás sempre tenha negado essa interpretação para essa cláusula. 

Durante os três meses depois daquele cessar-fogo, o Shin Bet só registrou um ataque: dois morteiros disparados de Gaza, em dezembro de 2012. Os funcionários israelenses ficaram impressionados. Mas convenceram-se rapidamente de que a calma na fronteira de Gaza seria, em primeiro lugar, efeito da contenção pelos israelenses e de os palestinos terem entendido qual seria o interesse deles. Israel, por isso, não viu motivo forte para aplicar a parte que lhe cabia aplicar daquele acordo. Nos três meses seguintes, depois do cessar-fogo, as forças israelenses atacaram Gaza com regularidade, atacaram agricultores palestinos e os que recolhiam lixo em áreas próximas à fronteira, e atiraram contra barcos de pesca, impedindo os pescadores de terem acessos à maioria dos pesqueiros no mar de Gaza. 

  A abertura do cerco de Gaza jamais aconteceu. As passagens foram mantidas permanentemente fechadas. As chamas ‘áreas de transição’ [orig. buffer zones] – terras agricultáveis nas quais que os agricultores gazenses não poderiam pisar sob risco de serem mortos a tiros – foram reinstituídas. As importações caíram, as exportações foram bloqueadas e poucos gazenses obtiveram autorização para entrar em Israel e na Cisjordânia.

Israel comprometera-se a manter negociações indiretas com o Hamás sobre a implementação do acordo de cessar-fogo, mas sempre adiou as reuniões, primeiro porque queria ver se o Hamás manteria sua parte do acordo; depois, porque Netanyahu não podia fazer qualquer concessão ao Hamás nas semanas antes das eleições de janeiro de 2013; depois, porque uma nova coalizão israelense estava sendo formada e precisava de tempo para implantar-se. As conversações jamais aconteceram. Para o Hamás, a conclusão foi clara: ainda que algum acordo fosse negociado por EUA e Egito, nem assim Israel cumpriria qualquer acordo. 

Mas o Hamás continuou a manter o cessar-fogo, para grande satisfação de Israel. Implantou uma nova força policial encarregada de prender palestinos que tentassem lançar foguetes. Em 2013, houve ainda menos foguetes lançados de Gaza, que em qualquer ano desde 2003, logo depois que os primeiros rojões primitivos começaram a ser lançados para o outro lado da fronteira. O Hamás precisava de tempo para reconstituir seu arsenal, fortificar suas defesas e preparar-se para a batalha seguinte, quando usaria suas forças armadas para tentar pôr fim ao cerco de Gaza. Mas o Hamás também contava com que o Egito se abriria para Gaza, pondo fim ao período durante o qual Egito e Israel se dedicaram a escapar, os dois lados, à responsabilidade pelo território e seus habitantes reduzidos à miséria, o que tornaria menos decisivamente importante conseguir que Israel aliviasse o cerco.  

Em julho de 2013, o golpe no Cairo, que levou ao poder o general Sisi, acabou com as esperanças do Hamás. O regime militar de Sisi culpou o deposto presidente Morsi, da Fraternidade Muçulmana, e o Hamás, braço palestino do mesmo grupo, por todas as desgraças do Egito. As duas organizações foram banidas do Egito. Morsi foi formalmente acusado de conspirar com o Hamás para desestabilizar o Egito. O líder da Fraternidade Muçulmana e centenas de apoiadores de Morsi foram condenados à morte. Os militares egípcios usaram retórica cada vez mais ameaçadora contra o Hamás, que passou a temer que o Egito, Israel e a Autoridade Palestina liderada pelo Fatah se aproveitariam da fraqueza de Gaza para lançar campanha militar coordenada contra a Faixa. Os líderes do Hamás foram proibidos de deixar a Faixa, proibidos de viajar. O número de gazenses autorizados a entrar no Egito foi reduzido a uma mínima fração do que fora antes do golpe. Quase todos os túneis pelos quais chegavam bens do Egito para Gaza foram fechados. O Hamás usava impostos cobrados sobre esses bens para pagar os salários dos mais de 40 mil funcionários públicos em Gaza. 

  Irã e Síria, ex-aliados e primeiros apoiadores do Hamás, não ajudariam dessa vez, a menos que o Hamás deixasse de apoiar a Fraternidade Muçulmana e passasse a apoiar o governo do alawita Bashar al-Assad, na guerra cada dia mais sectária na Síria contra o que se convertera em oposição predominantemente sunita. Os aliados que restavam ao Hamás tinham seus próprios problemas: a Turquia, preocupada com os tumultos internos; o Qatar pressionado pelos vizinhos, para reduzir seu apoio à Fraternidade, que as demais monarquias do Golfo veem como principal ameaça contra elas. A Arábia Saudita declarou a Fraternidade “organização terrorista”; outros estados do Golfo continuavam a reprimir os Irmãos. Na Cisjordânia, o Hamás não podia hastear uma bandeira, fazer um discurso ou uma reunião, sem o risco de ter seus membros presos por Israel ou pelas forças de segurança da Autoridade Palestina.  

Com a pressão aumentando e sem aliado forte ao qual recorrer, a queda de Gaza foi rápida. Embora Israel tenha ‘respondido’ ao fechamento dos túneis pelo Egito e à licença para que pedestres cruzassem a fronteira, com pequeno aumento na oferta de bens e no número de licenças para sair da Faixa, nada mudara na política fundamental dos israelenses. Os racionamentos de eletricidade foram ampliados, os blecautes diários já estavam durante de 12 a 18 horas. Os necessitados de tratamento em hospitais egípcios pagavam propinas de até $3000 para cruzar a fronteira, vez ou outra, quando era ocasionalmente aberta por um dia. Os racionamentos de combustíveis faziam com que se formassem filas de vários quarteirões nos postos, e brigas em torno das bombas. O lixo continuava empilhado nas ruas porque o governo não tinha meios para comprar combustível para os caminhões de coleta. Em dezembro, as usinas de tratamento de esgoto e água foram fechadas e o esgoto passou a escorrer pelas ruas. A crise se agravou: mais de 90% do aquífero de Gaza foi contaminado.

  Quando se tornou evidente que os tumultos no Egito não resultariam em derrubada de Sisi e volta da Fraternidade ao poder, o Hamás só viu quatro saídas possíveis. A primeira seria reaproximar-se do Irã, ao preço inaceitável de trair a Fraternidade na Síria e enfraquecer o apoio ao Hamás entre os próprios palestinos e a maioria dos muçulmanos sunitas em todo o mundo. A segunda seria criar novos impostos em Gaza, mas nenhum novo imposto compensaria a perda da renda dos túneis; e qualquer novo imposto contribuiria a favor da oposição ao Hamás. A terceira seria lançar foguetes contra Israel, na esperança de que um novo cessar-fogo trouxesse alguma melhoria nas condições em Gaza. Essa possibilidade horrorizou os funcionários dos EUA: minaria a cordata liderança palestina em Ramallah e poria fim às conversações de paz que John Kerry lançou no mesmo mês do golpe do general Sisi. Mas o Hamás sentiu-se vulnerável demais, especialmente por causa do papel potencial de Sisi em qualquer novo conflito entre Gaza e Israel, para adotar essa terceira possibilidade. Quanto às conversações de paz, não cabia dúvida alguma de que também fracassariam.  

A opção final, que o Hamás acabou por escolher, foi entregar qualquer responsabilidade pelo governo de Gaza a prepostos do Fatah, da liderança em Ramallah, apesar de eles terem sido derrotados nas eleições de 2006. 

  O Hamás pagou preço alto, aceitando quase todas as demandas do Fatah. O novo governo da Autoridade Palestina não incluiu nenhum membro do Hamás ou aliado do Hamás, e todas as principais figuras do governo da Autoridade Palestina permaneceram em seus postos. O Hamás concordou com que a Autoridade Palestina deslocasse de volta para Gaza vários milhares de seus guardas de segurança; que pusesse seus guardas nas fronteiras e postos de passagem, sem posição recíproca para o Hamás no aparelho de segurança na Cisjordânia. Mais importante, o governo anunciou que aceitava as três condições impostas pelos EUA e aliados em troca de uma ajuda ocidental longamente esperada: não violência, cumprimento de acordos passados e o reconhecimento de Israel. Embora o acordo estipulasse que o governo da Autoridade Palestina se absteria de fazer política, Abbas anunciou que manteria seu programa político. O Hamás praticamente nem protestou.  

O acordo foi assinado dia 23 de abril, depois que as conversas de paz de Kerry fracassaram; se as conversações tivessem feito algum progresso, os EUA teriam feito o máximo que pudessem para impedir que o acordo fosse assinado. Mas o governo Obama estava desapontado com as posições que Israel assumiu durante as conversações e declarou Israel culpada por parte do fracasso. A frustação ajudou a empurrar os EUA a reconhecer o novo governo palestino, apesar das objeções de Israel. Mas isso era o mais longe até onde iriam os EUA. Por trás das cortinas, os EUA pressionavam Abbas para que evitasse qualquer verdadeira reconciliação entre Hamás e Fatah. O Hamás buscou reativar o conselho legislativo palestino deixado esquecido há muito tempo, para que fiscalizasse o novo governo. Mas a assembleia tem maioria de membros do Hamás, e os EUA alertaram Abbas de que suspenderiam qualquer apoio financeiro e político ao novo governo, caso a assembleia voltasse a reunir-se. 

  O acordo de reconciliação foi impopular dentro do Hamás. Dos movimentos de base ao segundo escalão da liderança, todos entendiam que o acordo geraria problemas terríveis. 

Moussa Abu Marzouk, alto dirigente do gabinete político, passou semanas em Gaza em reuniões com quadros do Hamás, ouvindo suas preocupações e tentando convencê-los da sabedoria do acordo. Os militantes temiam que o pessoal de segurança do Fatah tentasse vingar as mortes resultantes da luta entre  Hamás e Fatah em 2006 e 2007, e iniciassem nova guerra civil. Comandantes do Hamás queriam garantias de que a Autoridade Palestina não estenderia sua colaboração com Israel e contra o Hamás, da Cisjordânia para dentro da Faixa de Gaza. Funcionários públicos, milhares dos quais não são membros do Hamás, temiam ser despedidos, dispensados ou ficar sem salários. Outros diziam que o Hamás cedera tudo, sem qualquer garantia de que o Fatah cumpriria o que prometera. Um dos argumentos que os líderes do Hamás apresentavam para ter assinado o acordo foi que o acordo permitiria que o movimento se focasse na sua própria missão original: a resistência militar contra Israel.  

Tão logo o governo foi formado, todos os medos dos ativistas do Hamás começaram a confirmar-se. Os termos do acordo não apenas eram desfavoráveis: eles tampouco foram postos em prática. A condição mais básica do acordo – que o governo pagaria os funcionários públicos que fazem Gaza funcionar e que seria aberta a passagem com o Egito – ficaram no papel. Ao longo de anos, os gazenses ouviram dizer e repetir que todos os seus sofrimentos eram culpa do governo do Hamás. Já não havia governo do Hamás, e as condições de vida na Faixa de Gaza haviam piorado muito.
*****


Dia 12 de junho, dez dias depois de formado o novo governo, um evento inesperado mudou radicalmente o destino do Hamás. Três estudantes israelenses foram sequestrados e mortos quando voltavam da escola religiosa na Cisjordânia. Quando os cadáveres foram encontrados, um grupo de judeus israelenses capturaram um palestino de 16 anos perto de sua casa em Jerusalém Leste, jogaram-lhe gasolina sobre o corpo e o queimaram vivo. Irromperam protestos entre os palestinos em Jerusalém, Negev e Galileia, e a Cisjordânia permaneceu relativamente calma. Israel culpou o Hamás pelo assassinato dos estudantes que saíam da escola religiosa, apesar de vários funcionários da segurança de Israel terem declarado que acreditavam que os criminosos tivessem agido por conta própria, sem ordens superiores. 


Na caçada aos suspeitos pelo assassinato, Israel fez sua maior campanha na Cisjordânia contra o Hamás desde a Segunda Intifada: fechou escritórios do Hamás e prendeu centenas de membros de todos os níveis. O Hamás negou responsabilidade pelas capturas e disse que as acusações de Israel eram pretexto para iniciar uma ofensiva contra o grupo. Dentre os presos estavam mais de 50 dos 1.027 prisioneiros que haviam sido libertados em 2011, na troca pelo soldado israelense Gilad Shalit, capturado em combate pelo Hamás. O Hamás viu essas prisões como mais uma violação do acordo Shalit, que especifica as condições sob as quais os prisioneiros libertados poderiam voltar a ser presos, e contém outros dispositivos que Israel jamais cumpriu, sobre melhoria de condições dos demais prisioneiros palestinos e direitos a receber visitas.  

A liderança palestina em Ramallah trabalhou em íntima coordenação com Israel para prender militantes, e raramente resultou tão desprestigiada entre seus próprios eleitores, muitos dos quais creem que sequestrar israelenses é o único meio efetivo para obter a liberdade de prisioneiros que a ampla maioria do país vê como heróis nacionais. Em inúmeras cidades da Cisjordânia, os moradores protestaram contra a colaboração entre a segurança da Autoridade Palestina e Israel. Um ex-ministro de Assuntos Religiosos, muito próximo de Abbas, foi com seus guarda-costas à Mesquita al-Aqsa; pessoas que lá rezavam os atacaram e todos tiveram de ser hospitalizados. O emissário que Abbas enviou para visita de condolências à família do adolescente palestino assassinado foi expulso da casa. 

  Com os protestos espalhando-se por Israel e Jerusalém, militante em Gaza, de grupos não ligados ao Hamás, começaram a lançar foguetes e morteiros em movimento de solidariedade. Sentindo a vulnerabilidade de Israel e a fragilidade da liderança em Ramallah, líderes do Hamás ordenaram que os protestos fossem ampliados até converterem-se numa terceira intifada. Quando o fogo dos foguetes aumentou, viram-se arrastados para um novo dilema: não podiam ser vistos proibindo os ataques e, ao mesmo tempo, conclamando para um levante em massa. A retaliação de Israel culminou no bombardeio de 6 de julho, que matou vários militantes do Hamás, o maior número de baixas que o grupo sofreu em vários meses. Dia seguinte, o Hamás começou a chamar para si toda a responsabilidade pelos foguetes. E Israel então anunciou a “Operação Linha Protetora”.  

Para o Hamás, a escolha não foi tanto entre paz e guerra, quanto entre morrer por estrangulamento lento e uma guerra que tinha uma chance, embora pequena, de afrouxar o nó. O Hamás vê-se numa batalha pela própria sobrevivência. Seu futuro em Gaza depende do desenlace. Como Israel, o Hamás definiu limites bem definidos, objetivos com os quais simpatiza grande parte da comunidade internacional.  

O principal objetivo é conseguir que Israel honre os três acordos passados: o acordo da troca do prisioneiro Shalit, inclusive com a libertação dos antigos prisioneiros soltos e agora novamente presos; o acordo do cessar-fogo de novembro de 2012, que determina o fim do cerco da Faixa de Gaza; e o acordo de reconciliação de abril de 2014, que permite que o governo palestino pague salários em Gaza, mantenha funcionários seus nas fronteiras, receba o material de construção desesperadamente necessário e reabra a passagem de pedestres entre Gaza e o Egito.  

Não são objetivos irrealistas e há crescentes sinais de que o Hamás tem boa chance de obter pelo menos alguns desses objetivos. Obama e Kerry disseram que acreditam que o cessar-fogo deva basear-se no acordo de novembro de 2012. Os EUA também mudaram sua posição sobre o pagamento de salários em Gaza, e propuseram, num rascunho de acordo apresentado a Israel dia 25/7, que os fundos sejam transferidos para os funcionários em Gaza. Durante a guerra, Israel decidiu que poderia resolver seu problema de Gaza com a ajuda do novo governo de Ramallah que, antes, Israel havia formalmente boicotado. O ministro da Defesa de Israel disse que esperava que um cessar-fogo serviria para implantar forças de segurança do novo governo de Ramallah nas passagens de fronteira em Gaza. Netanyahu também já começou a baixar o tom de voz sobre Abbas.  

Perto do fim da terceira semana de combates, Israel e os EUA discretamente fingiram que não viram que o governo palestino pagou todos os funcionários que trabalham em Gaza, pela primeira vez. Funcionários israelenses em todo o espectro político já começam a admitir privadamente que sua política anterior para Gaza foi errada. Todas as partes envolvidas em mediar um cessar-fogo já cogitam arranjos pós-guerra que efetivamente fortalecerão o novo governo palestino e seu papel em Gaza – e, por extensão, fortalecerão Gaza em si. 

  Muito mais difícil será conseguir a libertação dos ex-prisioneiros agora reaprisionados. Mas se a guerra prossegue, e uma incursão por terra torna-se mais provável, as chances de o Hamás capturar um soldado israelense aumentam. O Hamás já tentou pelo menos quatro vezes capturar um soldado israelense até agora e pode ter tido sucesso em duas delas (já há hoje, 1/8/2014, pelo menos um soldado israelense capturado em combate – embora os jornalistas brasileiros só falem em “soldado sequestrado”, como se tivesse sido sequestrado no supermercado. Não. Foi capturado em combate[1] [NTs]). Israel nega que a primeira tenha sido bem sucedida e, no momento em que redijo esse artigo, Israel ainda procura pelo segundo soldado não localizado. Poucas coisas desmoralizariam mais completamente o governo de Ramallah que um novo acordo de troca de prisioneiros com o Hamás, mesmo que em escala menor que o acordo Shalit.  

Quando o Hamás anunciou que capturara um soldado israelense dia 20/7, multidões acorreram para as ruas de Gaza, Jerusalém e na Cisjordânia, soltando fogos de artifício e distribuindo doces e balas pelas ruas, com renovada esperança de voltar a ver amigos e parentes presos nas prisões israelenses.  

Manifestações de palestinos em solidariedade com Gaza espalharam-se. Já se viam mais bandeiras do Hamás que do Fatah em recente protesto em Nablus. A liderança em Ramallah, embora não muito convincentemente, adotou parte da retórica do Hamás, usando com frequência a palavra “resistência” e elogiando a luta do Hamás. Tem havido confrontos em pontos da Cisjordânia e em Jerusalém Leste quase todas as noites. Dia 24 de julho, na noite de Laylat al-Qadr, dia santificado para os muçulmanos, o ponto de controle de Qalandiya, no norte de Jerusalém, foi cenário da maior manifestação popular em toda a Cisjordânia desde a Segunda Intifada.  

O Hamás sabe que não pode derrotar militarmente Israel, mas a guerra de Gaza guarda a possibilidade de uma recompensa distante, mas não menos importante: agitar a Cisjordânia, minar a liderança de Ramallah e todo o programa de negociação perpétua e perpétua concessão e perpétua dependência dos EUA, que o governo de Ramallah encarna.  

Para muitos palestinos, o Hamás demonstrou, mais uma vez, a efetividade comparativa da militância. 

  Os túneis, que foram fator decisivo para os sucessos do Hamás na atual guerra são motivo dos ataques dos israelenses contra Gaza desde bem antes da retirada de Israel em 2005. O Hamás destaca sempre uma série de ataques baseados nos túneis, inclusive a explosão de dezembro de 2004, no subsolo de um posto do exército de Israel no sul de Gaza, que ajudou a precipitar a retirada israelense.  

  Desde que os combates em Gaza recomeçaram, esse verão, Israel não anunciou sequer uma única nova colônia e já manifestou disposição para fazer algumas concessões em demandas palestinas – conquistas que o governo de Ramallah nunca sequer se aproximou de alcançar apesar dos muitos anos de negociações. O resultado da luta ajudará a determinar o caminho futuro do movimento nacional palestino. 

  O real obstáculo que impede um levante na Cisjordânia jamais foi, como o Hamás tem dito, a colaboração de Abbas com Israel. Obstáculo real é a fragmentação social e política, e a ideia que se vai implantando entre os palestinos, sem encontrar qualquer oposição, de que a libertação nacional deva ser o segundo objetivo, superado de longe, em importância, por projetos apolíticos e tecnocráticos de construção do estado e de desenvolvimento econômico. Esses são os maiores obstáculos que o Hamás enfrenta. 

  Se a guerra mais recente conseguiu instilar algum orgulho nas multidões palestinas, que dizem que já se acostumaram a sentir vergonha do modo como seus líderes rastejam aos pés de norte-americanos e israelenses, a vitória do Hamás não foi pequena.  

Mas o Hamás também arriscou muito. Pode perder tudo, no caso de Israel reavaliar a posição, mantida há muito tempo, de que o Hamás pode ser deixado com a tarefa de policiar Gaza, estratégia que tem mantido o Hamás suficientemente forte em Gaza para exercer algo bem perto de monopólio do uso da força. Ironia das semanas recentes de combate em campo é que a demonstração de poder do Hamás está pondo em risco a própria posição deles, em Gaza. Israel pode decidir que o Hamás está forte demais e é ameaça grande demais.  

O Hamás conseguiu deter (no sentido de ter tornado extremamente lenta) a incursão dos israelenses por terra e infligiu dúzias de baixas aos soldados de Israel, muito mais do que os israelenses previam. Duas semanas depois de iniciada a ação dos ‘coturnos em solo’, o exército de Israel ainda não avançou além da primeira linha de território urbano densamente povoado.  

Graças à vasta rede subterrânea de tuneis que levam não só para dentro de Israel, mas espalha-se também sob Gaza, se Israel decidir entrar nas áreas centrais das cidades, o número de baixas certamente aumentará. Durante a Operação Chumbo Derretido em 2008-09, Israel entrou muito mais fundo dentro de Gaza e perdeu só dez soldados, quatro deles em fogo amigo; em 2014, só até agora, o exército de Israel já perdeu mais de 60 soldados. As baixas de militantes do Hamás parecem ser suportáveis. 

  Pela primeira vez em décadas, Israel defende-se contra um exército que conseguiu entrar fundo nas fronteiras de 1967 – usando tuneis e em incursões navais. Os foguetes produzidos pelo Hamás já alcançam agora todas as grandes cidades de Israel, inclusive Haifa, e o Hamás já tem drones armados com foguetes. O Hamás conseguiu manter fechado o principal aeroporto de Israel durante dois dias. Israelenses que vivem perto de Gaza já abandonaram suas casas e temem retornar, porque o exército de Israel diz que é possível que ainda haja túneis não localizados. Os foguetes de Gaza obrigam os israelenses a dormir nos abrigos, noite após noite – o que mostra que o exército de Israel não está conseguindo neutralizar a ação do Hamás. Estima-se que a guerra já custou a Israel bilhões de dólares.  

Os maiores custos, claro, ficaram sobre os civis gazenses, que são a maioria dos mais de 1.600 mortos até o momento do cessar-fogo anunciado e imediatamente quebrado, dia 1º de agosto. A guerra matou famílias inteiras, devastou bairros inteiros, destruiu residências, cortou a eletricidade e quase todo o acesso à água. Gaza precisará de anos para se recuperar, se algum dia recuperar-se.  

E tudo sugere que, em pouco tempo, o Hamás estará novamente pronto para outra luta. Assim, teve todos os incentivos para tentar alcançar seus objetivos centrais, principalmente o de pôr fim ao cerco de Gaza. Os mediadores estão tentando ajudar o povo de Gaza sem dar a impressão de que reconhecem uma vitória do Hamás e registram a derrota de Israel.  

Do ponto de vista de Israel e do Egito, o que está em jogo é o que essa já bem visível – ou claramente possível – vitória do Hamás diz sobre o futuro da Fraternidade Muçulmana na região. O que está em jogo para os aliados da Fraternidade, Qatar e Turquia, é o que pode significar uma derrota. O simbolismo do conflito, que todos perceberam com clareza, ajudou a prolongá-lo.  

A solução óbvia é deixar o novo governo palestino voltar a Gaza e reconstruí-la. Israel poderá dizer que enfraquece o Hamás ao fortalecer seus inimigos. O Hamás pode dizer que conseguiu reconhecimento para o novo governo e alívio considerável no bloqueio. É solução, claro, que Israel, EUA, Egito e a Autoridade Palestina poderiam ter facilmente organizado nas semanas e meses de ‘conversações’ que tiveram antes de a guerra começar, antes de haver tantos mortos. 

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[1] http://www.jpost.com/Operation-Protective-Edge/IDF-soldier-feared-kidnapped-369720

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