Que o eventual leitor perdoe um latinório, mas a concisão do idioma dos antigos romanos permite fórmulas lapidares, ainda hoje fortemente carregadas de sentido (próprio e figurado). Boa parte delas é de origem jurídica, como a que inspirou o presente título: nemo auditur propriam turpitudinem allegans.
Significa que ninguém será ouvido alegando a própria torpeza, portanto, na esfera judiciária, que nenhuma demanda, nenhum pleito ou argumento será levado em conta se baseado num fato ou ato imoral, torpe, ilegal. Caso frequente no Brasil é o de transações fictícias, visando a encobrir outras, por exemplo a chamada “vaca papel” em que um fingido contrato de parceria pecuária esconde um empréstimo em dinheiro com juros usurários. Se o tomador do empréstimo, ameaçado de falência, decide alegar em juízo que não pagou porque vacas e bezerros eram imaginários, meras metáforas para capital e juros, ser-lhe-á objetado que ele aceitou trapacear, portanto não tem nada a reclamar.
O adágio tem um valor moral que ultrapassa a esfera dos tribunais. Denuncia condutas cínicas e hipócritas de trapaceiros que se apresentam como vítimas quando suas manobras escusas não dão certo. Simétrico a esse, mas acrescentando à rejeição do cinismo e da hipocrisia, a da arrogância dos que acusam os adversários de crimes que eles próprios cometeram, está o argumento dito, também em latim, “tu quoque”, entendamos, tu me acusas de um delito que tu também cometeste. Um exemplo importante, para o qual D. Losurdo chamou a atenção em seu notável Stalin– História crítica de uma lenda negra (tradução brasileira da Editora Revan) ocorreu durante os processos de Nurembergue, quando “foi negado aos réus dos crimes nazistas (e também nos processos de Tóquio contra réus japoneses) o recurso ao “tu quoque”, ou seja, argumentar que os crimes de que estavam sendo acusados eram extremamente semelhantes àqueles cometidos por seus acusadores”. Na resenha do livro publicada em Crítica Marxista, Francisco Quartim de Moraes enfatizou a importância do subtítulo desse imprescindível estudo de Losurdo: “Ao mesmo princípio (tu quoque) remete a expressão leyenda negra[...]: ela foi forjada por intelectuais espanhóis para rebater as hipócritas acusações da Inglaterra liberal, que acusava a Espanha de cometer as piores atrocidades em suas colônias, “esquecendo” de que ela própria cometia enormes crimes em seu império colonial. Um crime não pode ser desculpado por outro, mas a função das lendas negras é fazer crer que os criminosos são sempre os outros”.
Não exageramos ao dizer que a mediática do Capital vive do ocultamento sistemático da dialética do nemo auditur e do tu quoque. Um exemplo recente, que entra no assunto de que começamos a tratar no mês passado, foi oferecido pelo deputado ultra reacionário ACM Neto ao dirigir-se ao então ministro do Esporte Orlando Silva numa audiência na Câmara Federal: “A vinda de V. Excia. ao Congresso é uma afronta ao povo brasileiro”.26out2011,. Além de maligna e arrogante, a frase enuncia um espesso disparate: comparecer perante os representantes institucionais do povo para lhes prestar esclarecimentos é obviamente um ato de respeito. Em afrontas ao povo brasileiro era especialista o avô homônimo do deputado, que entre outros atentados contra a soberania popular, defendeu desabridamente o nefando Ato 5 e atuou até o fim, com inegável persistência, nos últimos bunkers da ditadura militar. Ninguém escolhe o avô, mas todos podem escolher a relação que mantêm com ele e com o que ele representa. ACM Neto escolheu ser um clone do ACM. O “pensamento” político do qual é herdeiro está visceralmente ligado ao mais longo confisco dos direitos e liberdades da história moderna de nosso país. Por isso, quando ele alega falar em nome do povo, está na verdade alegando o passado sombrio do qual ele próprio emana.
Não foi só de ACM/Clone que vieram agressões de baixo nível contra Orlando Silva. A tucanagem também não deixou passar a ocasião de proferir o habitual sermão do moralismo udenista. Mas não foi do Congresso e sim das redações dos trusts mediáticos que partiram os golpes mais baixos e solertes. O editorial da Folha de 2 de novembro do ano recém findo, a cujas tolices pseudo dialéticas já nos referimos, não se deu ao trabalho de buscar um pretexto para passar do ataque ao então ministro do Esporte ao Partido do qual ele é membro e através deste ao comunismo enquanto tal. Tentando incluir a presidente na caçoada, o periodista pontificou: “a manutenção do PC do B à frente da pasta resulta numa "aufhebung" (síntese, superação) inquietante, pois a agremiação vê-se liberada a prosseguir com o aparelhamento do ministério -agora sob "nova" gerência”. O pedantismo mais ridículo é o dos ignaros: querem impressionar por sua erudição, mas como esta é de araque, dizem logo uma besteira. O profundinho referiu-se sarcasticamente a Aufhebung, tentando exibir familiaridade com a dialética. Mas exibiu dupla ignorância. Escreveu "aufhebung" com minúscula, embora qualquer principiante em alemão saiba que nesse idioma todos os substantivos se escrevem com maiúscula inicial. A tradução dessa categoria dialética hegeliana não é fácil. Mas "aufhebung inquietante” não quer dizer nada. É mero bestialógico anticomunista.
(continua)
* Professor universitário, pesquisador do marxismo e analista político.
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