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quinta-feira, 13 de julho de 2017
De tudo um pouco, menos justiça por Fernando Horta
Não diferem, em essência, a epistemologia que norteia o trabalho do historiador daquela que deveria nortear um juiz. De fato, seus trabalhos são muito semelhantes. Ambos criam narrativas sobre o passado através de um corpo de provas previamente recolhido. Pesam-se as importâncias de cada narrativa, seus pontos de apoio, suas falhas, incongruências para, no fim, oferecer uma explicação sobre uma ausência que fazemos – à força – presente. É a vontade do historiador que traz o passado de volta. Isto já se tem muito claro na historiografia. O peso dos fatos históricos é dado por quem reconstrói a narrativa. Os juízes – alguns – ainda parecem viver no mundo da “verdade absoluta”, como se eles fossem observadores distantes e plenos de um passado perfeitamente apreensível. E sobre a narrativa deste passado, não exercessem qualquer deformação.
Existem, entretanto diferenças entre os ofícios, nem tanto a de “responsabilidade” como dizem alguns. Se é verdade que alguns juízes tem a responsabilidade sobre a vida ou morte de certas pessoas (suas liberdades, posses e etc.) também é verdade que o historiador a tem sobre a memória de civilizações inteiras. Quando um historiador erra, engana-se ou deixa de fazer seu trabalho, milhões perdem sua existência, ainda que em forma de memória. E o passado costuma ser repetido. Mas, enquanto a sentença de um juiz tende a ser plena no momento e totalmente desimportante no futuro, a narrativa histórica trilha o caminho inverso. Uma sentença judicial de cem anos é totalmente desprezível como tal, uma narrativa historiográfica que sobreviva por cem anos tem uma força que sentença alguma jamais terá.
É verdade que existem juízes cujas decisões são mais formais, menos formais, mais narrativas, mais sintéticas e etc. Os historiadores também fazem diversos tipos de reconstrução do passado. Em que pese que o ofício de juiz é quase tão antigo quanto as civilizações, talvez fosse o caso dos juízes aprenderem mais com a História. Reconstruir uma narrativa é, antes de mais nada, estabelecer uma argumentação com algo que não está mais ali. Os historiadores, contudo, aprenderam que não é porque o passado não volta para cobrar correção de quem lhe evoca que o historiador é livre para contar o que quer que lhe seja interessante ou mesmo possível. Esta seria uma lição de ouro aos juízes.
A sentença do juiz Sérgio Moro condena – entre outras pessoas – o ex-presidente Lula a nove anos e meio de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A sentença tem 238 páginas, sendo que as dez primeiras de um resumo do processo e as 29 últimas sendo a “conclusão da sentença”. Das 199 páginas restantes, 41 são uma mistura de regorzijo próprio com menoscabo da defesa. Moro salienta como ele é “imparcial” citando todas as decisões da oitava turma do TRF4 e como eram “extensos os requerimentos probatórios” das defesas, inclusive com certas ameaças veladas de que atacar o juiz por quem se foi inocentado pode ser “de certa maneira prejudicial”. Nas páginas seguintes, Moro começa por afirmar que “a melhor e mais confiável prova a ser considerada é a documental”. Esta frase, entretanto, é uma amostra da diferença entre discurso e realidade na prática do juiz, eis que a análise “documental” ocupa apenas 24 páginas e tendo entre os “documentos” usados até reportagens de jornais. As 134 páginas restantes são de “provas orais” a que Moro conscientemente não distingue depoimentos de delações premiadas, usando todas a seu bel prazer e com mesma força.
Voltando à matemática, das 199 páginas de argumentação da sentença, Moro usa apenas 24 para analisar documentos materiais (12%) e 134 páginas para o que chama de “provas orais” (67%), que nada mais são do que uma mistura de depoimentos e delações sem relações de causa e efeito delimitadas e com quase nenhuma comprovação. Nenhuma prova documental é conclusiva.
Nesta maçaroca argumentativa que o juiz lança, algumas coisas ficam muito claras à luz da epistemologia e da análise do discurso. Uma sentença judicial não difere de uma narrativa qualquer acerca de um fato histórico e pode a ela serem aplicadas as mesmas técnicas. Se o juiz Sérgio Moro estivesse submetendo sua sentença a uma banca acadêmica seria, quase certamente reprovado. Sua narrativa padece do que se chama de viés de origem, viés de seleção e endogenia.
Viés de origem é um erro epistemológico que se aponta quando o autor da narrativa não consegue estabelecer relações de causa e efeito objetivas. No fundo, é semelhante ao torcedor de futebol que, ao analisar uma partida do seu time, apenas admite que ele perdeu por “ter sido roubado”. Em todos os momentos que Moro precisa cotejar o valor moral das ações de Lula, Moro o faz SEMPRE do pressuposto da ação venal. Isto ocorre mesmo quando não há indícios suficientes para se determinar causa ou mesmo circunstância. Moro nunca usa o in dubio pro reu. O conjunto universo das possíveis relações do ex-presidente é sempre tomado pelo julgador como sendo um conjunto ilícito. Nunca se concede o que se chama de “dúvida razoável”. Lula, desde que nasceu, é um delinquente, na visão de Moro. Isto choca porque, formalmente, o juiz repete algumas vezes na sentença que “não tem nada pessoal” contra o réu e inclusive diz que não lhe causa qualquer satisfação pessoal” a condenação de Lula. Isto após regozijar-se de que poderia decretar a “prisão preventiva do ex-presidente” e que não o faz para não causar “traumas”.
Viés de seleção ocorre quando, dentro de uma argumentação, todos os casos utilizados como “comprovação” são escolhidos com “animus” específico de obter a prova. Ora, se eu quero mostrar que um time de futebol é o melhor e eu escolho apenas as partidas em que ele jogou bem minha prova de pouco vale. A prova, para ser robusta tem que ser total (abrangendo todos os casos), aleatória (buscando casos comprobatórios escolhidos ao acaso) ou dirigida por critério impessoal (normalmente critério de tempo). Assim, se eu quero mostrar que um time é melhor que o outro ou eu pego TODAS as partidas entre eles, ou partidas aleatórias, ou defino que só vou contar a partir de 2000 (por exemplo), mas daí minha conclusão é apenas circunscrita ao tempo mencionado. Moro, utiliza casos específicos que ele dá uma interpretação de causa e efeito falha (normalmente admitindo a causa sem demonstrar) e não menciona casos em que o resultado tenha sido diferente.
Um exemplo é que Moro afirma que a “propina” paga a Lula foi uma reforma, a complementação de um apartamento comprado e a guarda de bens pessoais. Em todos os outros processos que conhecemos propinas são pagas em dinheiro. Em contas na Suiça, no Brasil ou nas famosas malas. Será que a OAS seria tão tola de deixar registrada a propina para Lula em forma de um apartamento? Sendo este apartamento ligado publicamente a sua empresa, ainda. O caso escolhido, da propina em bem imóvel cuja a origem é claramente o pagador da ilicitude, é significativo da forma como são pagas propinas? Se não é, porque com o presidente foi diferente? A Moro não interessa este tipo de questionamento, porque a priori Lula já lhe é culpado.
Outro erro crasso da sentença de Moro é o que chamamos na ciência de endogenia. Uma prova da qual não se consegue uma relação de causa e efeito dedutiva, depende de comprovação indutiva. Ora, se quero dizer que papagaios são verdes e não consigo nenhuma lei natural que comprove isto, vou a campo e catalogo milhões de papagaios e suas cores. Se no final eu tiver um número representativo da população de papagaios e todos eles verdes, então eu tenho algo. Nesta forma de comprovar é importante que eu veja muitos papagaios DIFERENTES. Se eu enxergar um milhão de vezes o mesmo papagaio não provo que todos são verdes. É preciso que os eventos de comprovação sejam INDEPENDENTES ENTRE SI. De outra forma o número das provas joga contra a força da comprovação e não a favor. Todas as provas de Moro advêm dos mesmos indivíduos envolvidos nas delações premiadas. Todos os atores externos, que também participaram dos eventos, afirmaram a inocência de Lula. E todos Moro reputou como “desimportantes” por um motivo ou outro. Apenas os delatores que “tem compromisso com a verdade” são levados em conta por Moro. Nem mesmo o depoimento de Sério Gabrielli (ex-presidente da Petrobrás) é considerado com tendo “muito crédito”, porque exatamente “era ele presidente da Petrobrás” durante o “esquema criminoso”. Ora, os delatores também o eram.
Moro incorre inúmeras vezes em erros de lógica formal. Um processo criminal precisa ter clara a relação de causa e efeito, consubstanciando culpa. É do acusador a obrigação de provar que “A fez X e que queria fazê-lo”. Para isto, é preciso mostrar a relação causal e não assumir que “é provável que ela exista”. Assim, Moro diz que o presidente não adquiriu o apartamento do Guarujá com as cotas que Dona Marisa tinha comprado, diz também que o presidente não requereu o recebimento em dinheiro do valor das cotas. Logo, conclui o juiz, existe uma relação escusa entre a OAS e Lula. Veja que são duas asserções negativas DAS QUAIS NUNCA se poderia derivar uma conclusão positiva. O horizonte de eventos que podem ter ocorrido é imenso, não podendo o juiz escolher o que convém a sua narrativa. Outro exemplo, quando do cotejo do depoimento de Lula. Moro afirma que “há contradições circunstanciais” e que já decorre logicamente que o presidente “mentiu” e que seu “álibi não se sustenta”. Moro fala isto a respeito de uma diferença entre quantas vezes o presidente esteve no apartamento do Guarujá entre 2009 e 2014 (uma ou duas), e quantas vezes Dona Marisa teria lhe comunicado sobre obras ou benfeitorias (uma ou duas). Na cabeça do julgador a pequena discrepância entre os depoimentos de Lula é comprovação de “mentira”, eis que era de suma “importância” este evento para o álibi do presidente. O juiz parece não saber que a importância é atribuída por ele juiz, uma vez que o fato pode ser totalmente menor para um velho político, duas vezes presidente e vive e respira política o dia todo. Também pode o presidente simplesmente não se lembrar.
A impressão que se tem lendo a sentença de Moro é muito ruim. Um juiz despreparado lógica e epistemologicamente que constrói uma narrativa mais acusadora do que o próprio Ministério Público e que passa as 238 páginas repetindo a acusação e, em nenhum momento, a questiona. Há que se diferenciar o que é direito de defesa formal do direito de defesa real. Moro é parte da acusação e seu discurso deixa isto muito claro, a defesa que “prove” sua inocência e em caso de dúvida Lula é culpado. Se isto não for entendido por todos os juristas sérios como, além de uma ruptura solar com tudo o que se conhece em direito, também abuso de autoridade do juiz então é melhor voltarmos à época das espadas e cada um fazer a sua justiça. Moro pode ser tudo e qualquer coisa, menos um juiz.
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