Era o ensolarado dia seis de outubro de 2009. Encontramo-nos no funeral de Bergson Gurjão Farias. Zó saudou o amigo sob aplausos e forte emoção, nos jardins da Reitoria da Universidade Federal do Ceará. Transitamos lado a lado ao longo do velório até o sepultamento. Ao falar do Partido Comunista do Brasil e dos que tombaram, suas emoções afloravam compulsórias, inapeláveis.
Por Luiz Carlos Antero, especial para o Vermelho
Depois o levei à residência de seus familiares. O inédito e surpreendente ósculo de um experimentado combatente na fronte de um dos seus pares pareceu-me apenas a distinção — comenda de honra conferida por sua firme e solidária determinação ao bom combate. E foi assim nesse dia. Despedimo-nos ali sem saber que seria nosso derradeiro encontro.
Dia 26 de novembro de 2012. Dor muito forte é aquela que, incômoda e latente, chega ou permanece depois, às vezes no dia seguinte ou dias a fio depois da pancada — alguns costumam dizer. Zó, o indômito Sérgio Miranda de Matos Brito, nos deixou na madrugada de um dia que as pessoas costumam enfrentar meio desanimadas, às vezes detestando até o crepúsculo do domingo — a fatídica véspera.
Foi uma noticia e uma sequencia de cenas inimagináveis que marcaram nossa segunda-feira, eu me vendo num avião rumo ao encontro da dor.
Uma noticia que o distanciamento do tempo, depois de tudo, ao invés de atenuar somente reproduz e multiplica a inconformidade e impacto. É quando “cai a ficha”: não encontraremos mais o Zó, nem “marcando o ponto” ou ao sabor do acaso. Aquele sorriso maroto, largo, aberto, divertido, nas piores e nas melhores situações, o mesmo começo de conversa: “E aí?” As perguntas curiosas ao se situar e o jeito sereno ao confrontar tensões, os braços largados ao longo do torso.
Não vai dar mais para vê-lo descortinar seus amplos, exaustivos e cuidadosos exames da conjuntura, da estratégia e da tática, da necessidade de seguir sempre além dos limites, de lançar o olhar mais largo ao horizonte, de ampliar radicalizando e radicalizar ampliando, da linha ampla e flexível a serviço do povo, dos trabalhadores, da classe operária, da necessidade de assimilar a unidade na diversidade, de oferecer o bom combate ao reformismo e à acomodação, de nunca aceitar a injustiça, de praticar a indomável rebeldia com aquela insofismável naturalidade dos justos.
Nem vai dar mais para ouvi-lo a contar prosaicas histórias da vida e da luta para todas as idades e gerações, de brincar com as crianças como se fosse seu próprio mundo, ou encantar os adultos com a “Lenda do boi do Maranhão”, aos mais castos ou formais; ou as poesias fesceninas do proscênio barroco “boca do inferno”, Gregório de Mattos Guerra, somente aos mais afeitos à arte ou afoitos às estripulias da vida, as gozações sempre prontas para aproximar as pessoas e o permanente cuidado em não ferir, as farras poéticas nas quais versejando a gente pegava o sol com a mão, em diversos momentos a bordo de um bugre, no pós-ditadura.
Mesmo quem não conhecia sua intimidade, podia perceber sua dimensão nas atitudes. Assisti, noutra longa madrugada, “cobrindo” como repórter do jornal Movimento ao seu julgamento, à revelia, em 1977, numa auditoria militar. Foi condenado pelos fascistas a três anos de prisão mas (sonoras gargalhadas) nunca conseguiram colocar as mãos nele. Na clandestinidade, familiares nossos o acoitavam da perseguição política impressionados com seu faro ao perceber a proximidade da repressão.
Tudo isso vivi depois que o Zé Auri, chegando de Paris, nos rearticulou, em novos capítulos da luta, na segunda metade dos anos 1970. Pois em tudo isso somente agora, ainda mais embargado, posso escrever algumas primeiras linhas e somente quando Zó, muito vivo na memória, segura a mão do amigo leal. Como se guiasse o batuque dos dedos no teclado, tão marcante sua presença, sua amizade, sua ressonância na vivência e na política, no descortino de sua capacidade teórica e política, de sua firmeza ideológica, do dirigente responsável e estimulante da ação inteligente, criativa e revolucionária.
Nas lembranças e nas incontidas lágrimas que pranteiam um amigo e um camarada com destacado lugar no panteão dos inigualáveis.
Que, também na condição de parlamentar honrou e orgulhou o Brasil sem perder a marcante simplicidade e o afeto dos que o conheceram e reconheceram. Deputado federal por Minas Gerais em quatro mandatos (1993-2006) destacou-se no cenário político — e como um dos mais influentes parlamentares na avaliação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP) por seu exaustivo e dedicado trabalho às frentes orçamentária, previdenciária, dos direitos sociais e trabalhistas.
Entretanto, sua marcante trajetória decorreu de sua militância ao longo de meio século na luta pelas liberdades democráticas e pelos avanços sociais e políticos no Brasil. Um grande e completo brasileiro, de atitude única, sincero e adversário antagônico da hipocrisia. De comunista “pai d’égua” — única condição paterna posta por “Seu” Jorge à opção de Zó.
Agora Zó estava irreconhecível, ali estirado, muito magro e sem aquele astral do gigante de feições generosas e rosto vivaz. E quem via, sentenciava: “não é ele!”, “ele nunca foi assim”. E foi sua presença viva que mais uma vez proferiu-se em choque aberto a favor da vida.
Naquela noite tão reprovada, detestada segunda-feira, naquele trânsito incessante de muitas gerações, nos diálogos funestos, mas também nas conversas animadas acerca de um roteiro marcante de incontáveis e inesquecíveis episódios, uma longa e dolorida madrugada movimentou o Salão Nobre da Câmara dos Deputados.
Mais uma vez estava ali Sérgio Miranda de Matos Brito, agregando numerosos reaparecidos que há muito não se viam, alguns há décadas, outros que não esperavam mais se ver ou que nem se imaginavam, entre si, subsistir às fatalidades.
Ali prostrado, Zó contagiou mais uma vez a inquietude que parecia agitar até o espelho d’água com inesgotáveis histórias. Reunidas, todas compõem uma enciclopédia de muitos contos, poemas, livros, mas sobretudo uníssono e apreciado exemplo da mais elevada saga humana.
Muitos de nós talvez, tantos quantos foram seus amigos e camaradas, escreveremos como se de alhures guiasse o batuque dos nossos dedos sobre o teclado, tão notável sua presença, sua afeição, sua ressonância no conteúdo e na essência deste épico pranto. De um modo e não de outro Zó permanece nessas vidas, em nossas vidas, na perseguição à utopia dos comuns que leva adiante os seus e os libertários sonhos de todos que animam e reanimam a capacidade de sonhar e agir.
Sérgio Miranda, Presente! Com nossas saudades! De um bravo que permanece perpetuado na plenitude da integridade, lucidez, sensibilidade e heroísmo dos bons.
*Luiz Carlos Antero é sociólogo, jornalista, escritor, membro da Equipe de Pautas Especiais do Portal Vermelho, assessor parlamentar no Senado Federal, filiado ao Partido Comunista do Brasil em 1969.
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