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domingo, 4 de junho de 2023

Coração duro de faraó - Paulo Vinícius da Silva

"Dixi et salvavi animam meam". (Disse, e salvei minha alma.) Marx, no  Crítica ao Programa de Gotha, provavelmente crendo não seria ouvido pelos dirigentes sindicais de sua época.

"Mas, vendo o faraó que havia descanso, endureceu o coração; e, como o Senhor havia predito, não ouviu Moisés e Aarão". (Êxodo 8, 11)

Presidentes-executivos e especialistas levantam "risco de extinção" imposto por Inteligência Artificial - Reuters, 30/5/23

A metáfora "coração de faraó" refere-se à insensibilidade do faraó citado no Êxodo, face aos avisos e, por fim, até mesmo diante das pragas do Egito que no texto bíblico sobre ele se abativeram. Ao ler o documento do 9o. Encontro Sindical Nacional do PCdoB, a analogia que me surgiu à mente foi esta, precisamente: "coração de faraó", e explico.

Entre o 8o. e o 9o. Encontro Sindical Nacional do PCdoB, o Brasil perdeu 700 mil mortos pela COVID. A derrota diante da Deforma Trabalhista se aprofundou e a realidade da classe trabalhadora e dos sindicatos piorou assustadoramente. A terceirização foi estendida ao "infinito e além". O fenômeno do trabalho por plataformas se impôs com a força que o tempo e a tecnologia tem, tornando a terceirização uma aspiração para milhões de trabalhadores que vivem uma neo-escravidão, cujas chibatadas são avaliações de clientes, a senzala se ampliou para o mundo, e com uma Casa Grande invisível, intocável. Pior: não apenas não se vê o Sinhô, nem o capataz, mas o quilombo não existe. Não há quem fale por eles. E a mentira de que estão sozinhos, em meio à condição comum que partilham, repete-se num loop infinito, tornando-se "verdade" no triste espaço que é reservado à comprovação, a própria vida.

A maioria da classe trabalhadora é a acima citada, longe, muito longe dos sindicatos. Talvez por isso, sua importância não cabe, nem a dureza dos seus dramas, no documento do 9o. Encontro Sindical do PCdoB. Dedica-se inexplicável tempo à análise do passado de quem o escreveu, e modestas linhas, nenhuma estatística, pouco debate aos principais fenômenos do passado recente, do presente e do futuro imediato. Confunde-se o texto com uma reivindicação cartista, no sentido do Cartismo sindical, com reivindicações que não deveriam constar em um texto que deveria elevar nossa capacidade de organização e ação. Parece, mostrar o que interessa - pouco - e silenciar sobre o que complica - muito. Como os desafios sempre serão mais importantes que as loas ao passado, ilustra o esgotamento de nossa política sindical desde a criação de uma central própria, a CTB. Se, em 2004, não aceitamos o "deixa o homem trabalhar" dito ao movimento sindical, hoje parece que somos nós quem o predicamos. Precisamos decidir se desejamos ter futuro, ou opinar se é corretamente executada a partitura, no convés do Titanic.

 Afinal, como não ter no centro que os sindicatos hoje são uma fração do que eram e representaram no passado? Como ignorar o que houve nos últimos anos, e só houve porque fomos derrotados? Como ignorar nosso envelhecimento e a falência das direções "políticas", que estariam nucleadas nos secretários sindicais e presidentes e tesoureiros dos sindicatos âncoras? Como ignorar a desvalorização pelas frações sindicais das bases que deveriam dirigi-las? Como ignorar que a renovação não se aplica sequer nas mais altas direções? Como ignorar derrota após derrota? É como se a eleição de Lula tivesse nos remido de todas as culpas, é como o repouso do faraó em meio às pragas, a trégua que cala os ouvidos para as decisões incontornáveis que rugem diante de nós.

Na real, reuniremos  em nosso 9o. Encontro uma parcela minoritária da esquerda, extraída de uma fração da classe composta pelos trabalhadores e trabalhadoras  FORMAIS e que ao mesmo tempo são FILIADOS aos sindicatos que sobreviveram à Deforma Trabalhista. É um lugar muito limitado para falar à classe trabalhadora. Se ela ignorar, acho que devemos compreender o porquê. Nosso lugar é o de dirigentes sindicais já  esbaforidos diante da tarefa de representar essa parcela minoritária da classe trabalhadora. Coração de faraó.

Em 2012 eu ainda era um "jovem brioso" (segundo os generosos critérios da Organização Internacional do Trabalho, que considera juventude até 35 anos). O único canto em que eu era tratado de jovem era no movimento sindical, embora eu me sentisse, no mais das vezes, tratado como menino. Talvez por isso eu tenha escrito o documento "Mudanças no Brasil, no mercado de trabalho e na juventude", e alertava, antes do Golpe e do desatar grave da Guerra Híbrida: 

Segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, a pirâmide populacional concentra na faixa etária de 15 a 34 anos mais de 35% da população brasileira (2),ou quase 67 milhões de pessoas. A População Economicamente Ativa (PEA), segundo dados do mesmo Instituto, reunia mais de 95 milhões de brasileiros(as).

Os dados eram de 2010, ainda, e essa realidade já era claríssima, e simples: a juventude já era maioria da classe, e se estendêssemos a faixa etária até meados de 40 anos, era a amplíssima maioria da classe. E era uma maioria em sofrimento, pois verificávamos - então eu era do Conselho nacional de Juventude-, que exatamente entre 15 e 29 anos estavam os precarizados, sem acesso à saúde, na luta para construir suas famílias após a gravidez adolescente, e os que NEM estudavam, NEM trabalhavam. Ou seja, uma insuficiente incorporação ao trabalho, à educação, à assistência social, às políticas públicas e à organização sindical. 

O coração de faraó, contudo, duro, era insensível à realidade. Eu ainda citei o Che, pra ver se quebrava o iceberg, vã esperança: "Que possamos, ao olhar para as transformações em curso, nos preparar para não menos que a vitória, dizendo corajosamente, como Che: “O alicerce fundamental de nossa obra é a juventude. Nela depositamos nossa esperança e a preparamos para tomar a bandeira de nossas mãos”.  Apostamos, ao contrário, no sólido alicerce das entidades sindicais existentes no tabuleiro da mesa das centrais sindicais nacionais e de seus sindicatos mais fortes, em que a CUT é a maior central (porque nos anos 80 apostou nuns meninos, e não no Joaquinzão - que ninguém sabe hoje quem é - uma ideia do Lula).

Aparentemente, nossos ouvidos moucos eram apenas nossos. Aparentemente nosso protagonismo na juventude só existe no terreno seguro dos congressos estudantis, não servindo para muito mais que isso,  sacramente de dois em dois anos. Se o início do refrão da canção  Años, "el tiempo pasa, nos vamos poniendo viejos" atemorizava já a muitos dentre nós, do lado de lá, nos círculos do imperialismo, a história era outra. 

Não apenas a internet se desenvolveu com foco na turma de quem eu falava, mas lá das catacumbas mais soturnas, figuras decrépitas em ideias e discurso, a exemplo de Olavo de Carvalho, Bolsonaro, as igrejas do pentecostalismo de negócios, e a fina flor da juventude trabalhadora foi dia e noite disputada pelos patrões, que lhes vendiam o empreendedorismo e muito mais... O velho que investe no novo, sobrevive. O velho que investe no passado, simplesmente morre.

Esses fenômenos se tornaram invisíveis, pois estava assegurada a chegada pacífica ao poder, e a via institucional-eleitoral assegurava perspectivas animadoras. Uma miopia típica do funcionário, tipicidade que vem sempre em conjunto: desprezo pela teoria, pragmatismo, conformação de grupos de interesse; tijolos solidamente unidos com cimento, erigindo a dureza no coração do faraó, retirando a plasticidade e a sensibilidade, a inteligência e o tirocínio da alma do guerrilheiro e da guerrilheira, nublando os propósitos de "servir ao povo" e de "ser entre o povo como o peixe n'água", citando de cabeça Mao Tsetung.

O que houve desde então?  

O imperialismo sabe de estatística, de pré-sal e geopolítica. Fomos colhidos pela Guerra Híbrida, e já em junho de 2013, há dez anos, perdemos as ruas para a direita, diante do olhar pasmado de sindicalistas e líderes da juventude, eu, na época, inclusive. A Petrobras e o Pré-Sal foram pilhados pelo lavajatismo, em sua sanha destrutiva que privatizou refinarias, arrancou o couro do povo, destruiu as grandes empresas de construção pesada, naval e até civil, venderam a ELETROBRAS. Os sindicatos foram caindo um a um, como pinos, num macabro boliche, restando apenas entidades que tiveram recursos e gestão capazes de resistir a tamanho flagelo. As ideias atrasadas, mentirosas, absurdas, depuseram Dilma, justificaram Temer, prenderam Lula. E aquela geração, que já estava precária quando escrevi o texto, em 2012, foi afundada ainda mais no charco de miséria e do desespero que envolveu o Brasil. Em vez da incorporação ao Projeto Nacional de Desenvolvimento, ganharam um aplicativo para sobreviver, o crack para sonhar e um lugar assegurado nas estatísticas mais assustadoras. E a pandemia.

Assim, o que acontecerá com o Brasil diante do desperdício de um bônus demográfico único em nossa História? 

Como vencer a irrelevância do movimento sindical sucessivamente demonstrada em 3 pleitos nacionais, marcados pelo declínio de sua representação parlamentar, sem esperança de reversão? Parece, sinceramente que, sequer para o Partido cuja razão de ser é representá-la, a classe trabalhadora real é importante, haja vista o papel decorativo de nossos secretários sindicais, sobejamente ignorados e inclusive limados sem pudor, tão logo haja qualquer atrito entre a "frente institucional" e as demandas dos trabalhadores e trabalhadoras. Os únicos problemas até para o pragmatismo da derrota são: quem em nós votará? E a frase do Chapolin Colorado, diante da próxima intentona golpista: e agora, quem poderá nos defender? Pergunta inconveniente, resposta nula.

Quase se pede desculpas, no texto, ao se mencionar a pirâmide invertida. Creio seja um duplo constrangimento. Primeiro, de se repetir o que não se aplica, fenômeno crescente entre nós. Segundo, porque o cupulismo, o burocratismo, o envelhecimento e a inalcançável distância entre direções sindicais e a maioria de suas próprias bases- sem citar quem está fora dos sindicatos -  são fenômenos tão gritantes que, até mitigada, a expressão tem a força de uma bomba.

Enquanto isso, o camarada Xi Jinping, em cujos ombros se depositam tantas esperanças da Humanidade, em 31/5, diante da  primeira reunião da Comissão de Segurança Nacional do 20º Comitê Central do PCCh

"pediu plena consciência das circunstâncias complicadas e desafiadoras que a segurança nacional enfrenta e a abordagem correta das principais questões de segurança nacional. Ele pediu esforços para salvaguardar o novo padrão de desenvolvimento da China com uma nova arquitetura de segurança e para abrir novos caminhos no trabalho de segurança nacional." (Reuters, 31/5)

Um tal alerta, em chinês bem dito, deveria tensionar-nos diante dos dilemas vividos pelo mundo e pelo Brasil. Nossa autocongratulação é como a tranquilidade do faraó na trégua que precedia o afogamento no Mar Vermelho. Não fazem falta as loas, os salamaleques. Carecemos é da boa e velha crítica e auto crítica e de compromisso com a perspectiva socialista e com o Brasil. Se não, para isso o PT é suficiente.  

Nosso documento, ao contrário, está fora do tempo, de costas para a classe trabalhadora real e muito atrasado na arte do CTRL + V, CTRL + C, vulgo copia e cola. Até para isso, melhor faz, hoje, o chat GPT.  Como disse um prócer conhecido meu outro dia, "quem lê essas resoluções"? Eis um sinal incontornável de degenerescência, doeu-me como uma pisa de fio elétrico. Comunista dá a vida pelo povo, por sua política, pelos camaradas. 

Lendo os textos de Cláudio Campos, espantei-me com seu brilho, aquele bom humor, a coragem de quem defendia o Brasil e o Socialismo com chamas apaixonadas a queimar cada palavra. O mais lindo no João Amazonas, era ele poder parecer ter dois mil anos, e ainda assim apostar todas as suas cartas, na juventude e na classe trabalhadora, para ouvir, entender e agir de acordo com a sua época e com a sobrevivência do PCdoB, função de sua relevância para a libertação do Brasil e a emancipação da classe trabalhadora. Não quero para mim outra medida. O silêncio e o envenenamento são as armas dos traidores. "Disse, e salvei minha alma".

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