Fundação Maurício Grabois :: As manifestações, neoliberalismo x mais desenvolvimento (Artigos)
Elias Jabbour
Um país com os pesados encargos de sua dívida pública, com o compromisso de debelar – via juros e câmbio – qualquer ameaça inflacionária e com um superávit primário a ser cumprido em seus calcanhares, não poderia esperar outra coisa senão um movimento, mesmo que difuso, de rebelião contra esse estado de coisas. Rebelião no seu sentido mais profundo, a saber: das relações de produção contra as forças produtivas.
Mandam as regras do método e da teoria do conhecimento buscar, ao analisar um fenômeno, separar o que é aparente do que é essencial. Aparentemente, estamos assistindo a um amplo movimento de massas com grande difusão de bandeiras, para todo gosto – diga-se de passagem. Na essência está clara a luta entre retrocesso neoliberal versus mais desenvolvimento. Daí a disputa pela direção do movimento ser tão central quanto ao pleito eleitoral do próximo ano.
Todo movimento de massas e mesmo revoluções são precedidas pelo esgotamento de determinado modelo econômico, causando crise e insatisfação. Perguntas: que movimento de massas no Brasil não foi precedido por um “esgotamento de modelo” ou mesmo de uma crise econômica profunda? Que movimento de massas em nosso país não carregou em sua essência uma luta renhida entre mais Estado ou mais mercado na economia? Ou mais desenvolvimento ou menos desenvolvimento? Historicamente, agraristas (hoje monetaristas ou “austeros”) e nacionalistas (desenvolvimentistas) acumularam forças às suas maneiras. Esse movimento com carapaça de processo histórico é diferente hoje? Independente do propalado “desenvolvimento” verificado nos últimos anos, estamos diante de uma grande desarmonia entre superestrutura versus base econômica? As relações de produção estão se rebelando contra as forças produtivas estabelecidas.
O modelo esgotou?
Sendo direto, não tenho dúvidas disso. E explico as razões. Detrás do biombo do “direito às cidades”, do “transporte público barato e de qualidade”, assim como de terminologias acadêmicas como a chamada “mobilidade urbana” e a inconsistente e equivocada crítica pela “opção rodoviária”, de JK, está o próprio “esgotamento do modelo”. Afinal, as cidades são onde as primeiras manifestações do fim do prazo de validade histórica das coisas se manifestam primeiro. A anatomia do macaco se compreende pela anatomia humana. O futuro do campo é a cidade e, se a cidade se esgotou, é porque o próprio sistema não anda servindo mais. É no mínimo incapaz de reproduzir a atividade humana.
O modelo está esgotado tendo na hipertrofia urbana sua maior expressão; estopim dos atuais acontecimentos. Existem sinônimos a serem debatidos. Um país que patina na casa dos 18% na relação PIB e investimentos não poderia esperar outra coisa senão a falta de extensas linhas de metrô, corredores de ônibus com veículos de qualidade, pontes, viadutos, largas vias expressas, e programas de habitação, com o fim de dar termo à vergonha da favelização.
Um país com essa taxa de investimentos não pode prover seu povo com esse (não) serviço de saúde e educação de péssima qualidade. Um país com os pesados encargos de sua dívida pública, com o compromisso de debelar – via juros e câmbio – qualquer ameaça inflacionária e com um superávit primário a ser cumprido em seus calcanhares, não poderia esperar outra coisa senão um movimento, mesmo que difuso, de rebelião contra esse estado de coisas. Rebelião no seu sentido mais profundo, a saber: das relações de produção contra as forças produtivas.
Se o problema está no PIB em si, não se sabe certamente. Não tenho dúvidas de que o problema não se resume ao dito dividendo, mas sim em seu divisor. Em curtas palavras, presume-se – também destas manifestações – que a renda nacional continua sendo catastroficamente distribuída. Causa e consequência do congelamento da variável independente, ou seja, o investimento. Como descongelar o investimento? Eis o “x” da questão.
O Plano Real em questão
O que esperar de um modelo cuja estratégia reside na busca permanente de uma dita estabilidade? O que esperar de um modelo em que o longo prazo é vítima de uma imensa armadilha da curva sazonal de preços? É possível a convivência entre o tripé macroeconômico com a melhoria e ampliação dos serviços sociais mínimos que as massas de nosso povo necessitam? Algum plano de mobilidade urbana minimamente séria é compatível com o objetivo estratégico de “estabilidade da moeda”? O povo não quer inflação, mas será que se o povo soubesse que 47% do orçamento da União é destinado, sem contingencionamento, ao pagamento religioso dos juros da dívida pública, o caos estaria mais desordenado do que já está (ou esteve)?
Não tenho dúvidas de que o povo sempre esteve ao lado do desenvolvimento e que o DNA desta rebelião está no profundo desejo, completamente oculto e subjetivo, de mudança de paradigma. Será que nem nós, trabalhadores que leem, não percebe isso? Ou continuaremos a debater no campo do inimigo, concordando que a “estabilidade” foi um grande legado de FHC ao país, algo intocável? Daremos cabo à manutenção de um crescimento pela expansão do consumo, sendo que na outra ponta deste incentivo ao consumo está a necessidade de uma taxa de câmbio pautado pelo mercado como forma de baratear importações, controlar a inflação e causar um dumping sobre nossa indústria pelo próprio Estado?
Devemos ter coragem e enfrentar o duríssimo debate de ideias acerca de verdades estabelecidas, e aceitas, por 95% do espectro político nacional. O Plano Real foi uma tragédia, um golpe no coração da nação. A ditadura estabelecida do curto prazo serviu à proscrição dos aparelhos voltados ao planejamento do desenvolvimento. Com o longo prazo fora de questão, a harmonia entre oferta e demanda nunca poderia ser alcançada pela via do investimento e sim pela compressão da demanda. As mentiras convencionais (“inflação por demanda”, “poupança precendendo o investimento”) continuam a povoar a subjetividade de intelectuais de todos os campos do pensamento e da militância política. Os preços são controlados pela destruição da indústria, dos empregos de qualidade e pela precarização dos serviços públicos. Até verbas voltadas ao combate ao crack foram vítimas do último grande contingencionamento orçamentário. Gastos governamentais geram demanda que, por sua vez, geram inflação. O círculo vicioso da estabilidade da moeda alimenta e retroalimenta tanto a onda das atuais manifestações quanto a criminalidade em si mesma que muitos fascistóides acreditam ser possível de termo com a matança de jovens e negros, pela polícia, nas periferias das grandes cidades.
A taxa de investimentos com relação ao PIB é inversamente proporcional ao aumento da barbárie social brasileira. Em 2012 foram cerca de 50.000 pessoas mortas, vítimas de armas de fogo. Enquanto isso o Ministro da Justiça na “Sala de Justiça” rumina e perde a linha diante da realidade que a condição de classe dele não permite perceber. Onde falta visão estratégica de país, sobra trabalho, à Polícia Federal, de “monitoramento das manifestações”. Medo do povo.
O pronunciamento de Dilma e a opção
Ao que tudo indica nossa presidenta, mulher séria e honrada, ouviu a voz das ruas, prometendo mais diálogo e enfrentamento das demandas. Ótimo sinal. O próximo passo é saber como fazer valer suas indicações sabendo que um grande plano nacional de mobilidade urbana não é possível cortando gastos, como quer os golpistas, ou recorrendo ao tesouro nacional. O momento é esse. Pressão e exercício de ouvido por parte de nossa mandatária.
Enquanto escrevo, ela está reunida com governadores e prefeitos. Todos com problemas fiscais com a própria União que sustenta um pacto federativo leonino, fruto do ultraliberalismo de FHC, Globo e Veja. Não seria o momento de se rediscutir este pacto? Não é o momento de se discutir mecanismos mais modernos de financiamento de imensas obras públicas fora dos parâmetros estabelecidos pelo tesouro e pela sua péssima equipe econômica? Mobilidade urbana requer expansão maciça do sistema metroviário. Vamos fazer isso com um olho no investimento e outro na inflação ou miraremos os dois olhos ao futuro?
Dilma está diante de uma opção cujo cotovelo da história em que estamos metidos não permite meio termo.
A outra opção é dar corda ao golpismo. O neoliberalismo e o fascismo são sinônimos. Sinônimo de repressão da demanda pela macroeconomia e repressão da demanda pela violência policial. Ou vem a mudança de paradigma ou a própria trama urbana poderá ser rompida. Trama esta tão indispensável à metrópole, onde tranquilamente o homem se sente perdido e só, no meio da massa, mais isolado e irresponsável do que se estivesse gravitando em torno da Lua.
Metrópole invertebrada, viabilizada à imagem e semelhança do transporte automobilístico individual. Moloch insaciável ao qual tudo se sacrifica, torna-se impotente para reprimir, legalmente, o crime – recorrendo ao crime da repressão terrorista. Repito: A taxa de investimentos com relação ao PIB é inversamente proporcional ao aumento da barbárie social brasileira. A opção está aí. O momento é agora.
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*Geógrafo. Doutor e Mestre em Geografia pela FFLCH-USP.
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