Por não ter como pagar a passagem de ônibus, Rafael Braga Vieira, por muitas noites, não voltava para casa na comunidade de Vila Cruzeiro, no bairro da Vila da Penha, Rio de Janeiro (RJ). Ele costumava improvisar onde dormir no centro da cidade — local onde foi preso, no dia 20 de junho de 2013, durante um ato do qual ele não participava. A pauta do protesto: a redução do preço da tarifa dos transportes públicos.
Mídia NinjaCaso ganhou notoriedade por explicitar modus operandi do sistema penal.
Cinco anos depois, o catador de materiais recicláveis cumpre prisão domiciliar e passa por um tratamento de tuberculose, que contraiu no sistema penitenciário. Em 2016, enquanto também cumpria regime aberto com uso de tornozeleira eletrônica, ele foi preso novamente em uma abordagem policial, sem testemunhas.
A defesa de Rafael aguarda a posição do Ministério Público sobre recursos de embargos infringentes contra a sentença em segunda instância, que condenou o jovem negro a 11 anos de prisão.
Os advogados querem a pena por tráfico seja revista e também que ele seja absolvido da condenação de associação ao tráfico. A expectativa da defesa é que os recursos protocolados sejam julgados até o final do ano.
O caso, cheio de idas e vindas, virou símbolo por explicitar o funcionamento da seletividade penal e do racismo institucional no país.
Seletividade penal
Presos em abordagens policiais sem testemunhas, com uma pequena quantidade de drogas e com suspeita de flagrantes forjados, segundo a defesa do jovem. O caso de Rafael Braga descreve muitos outros.
Das mais de 726 mil pessoas encarceradas em junho de 2016, cerca de 40% eram presos provisórios. Mais da metade dessa população era composta de jovens entre 18 a 29 anos; 64% são negros. Os dados são do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen).
A jornalista Luiza Sansão, que acompanha o caso desde 2013, produziu 22 reportagens e uma crônica sobre o processo para a Ponte Jornalismo. Atualmente, ela trabalha em um livro-reportagem que narra a história de Rafael Braga.
Rafael Braga em setembro de 2017, quando saiu para o regime domiciliar / Luisa Sansão/Ponte Jornalismo
Para ela, o caso não difere de outros casos de injustiças a população pobre e negra. "Ele, na realidade, simboliza algo que acontece todos os dias. E as violências das quais ele é vítima obviamente não começaram em 2013, quando ele foi preso. O Rafael sofre com violações a vida inteira como todos os jovens moradores de favelas, negros, com o perfil ‘criminalizável’", disse Luiza Sansão.
Nathalia Oliveira, integrante da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas (INNPD), refuta a ideia de que Rafael foi "o único condenado das manifestações de junho" porque não ele não estava se manifestando.
A militante afirma que o processo de Rafael é um caso que se relaciona com a fragilidade da Lei de Drogas de 2006. Para ela, nova legislação caracterizou o tráfico em um nível de um crime hediondo, com sentenças duras em relação à droga apreendida.
"Qualquer prisão que acontece em área periférica com droga é entendida como tráfico porque a Lei das Drogas é construída a partir de uma narrativa em que o tráfico só acontece nas regiões periféricas da cidade", apontou Nathalia.
O caso ganhou notoriedade, segundo Oliveira, pelo didatismo, por escancarar uma realidade que ocorre todos os dias no país.
"O simbólico, para o movimento negro, é mostrar uma coisa que a gente está falando faz tempo: as prisões no Brasil são políticas, por uma decisão de Estado de utilizar das prisões como mecanismo que tem como resultado a segregação da população negra.", contou Nathalia.
A jornalista Luiza Sansão pondera que a repercussão midiática relaciona-se com o contexto do momento, de mobilização e manifestações.
“E quando pessoas que também foram criminalizadas e que também foram presas — em grande parte pessoas brancas, jovens, de classe média — se deram conta que tinha ficado uma pessoa para trás, essas pessoas foram saber quem era aquele cara que tinha ficado. E era o Rafael.”, comentou a jornalista.
‘Explosivo’ de Pinho Sol
Naquele dia 20 junho de 2013, os protestos reuniram um milhão de pessoas em todo o país. Só na capital fluminense, 300 mil pessoas foram para Candelária, em um ato que terminou com feridos pela repressão policial e com detidos. O jovem Rafael Braga Vieira, na época com 25 anos, foi um destes jovens — mesmo sem participar dos protestos.
Durante a dispersão do protesto, Rafael foi abordado por dois policiais civis na Rua do Lavradio, no bairro da Lapa.
Segundo os agentes, o jovem carregava dois frascos em suas mãos, “aparentemente semelhante ao coquetel molotov" e "com odor semelhante ao de álcool e o outro preenchido com substância de odor muito forte, embora não identificado”.
Posteriormente, o laudo do esquadrão antibomba da Polícia Civil atestou que os frascos de Pinho Sol e Água Sanitária tinham uma ínfima capacidade explosiva e seria pouco efetivo para funcionar como coquetel molotov.
Rafael Braga ficou preso por cinco meses no Complexo Penitenciário de Japeri, até dezembro 2013, quando foi condenado em primeira instância. A sentença do jovem foi de cinco anos em regime fechado por porte de material explosivo.
Em dezembro de 2015, o jovem conseguiu autorização para a progressão ao regime aberto.
No entanto, na manhã do dia 12 de janeiro de 2016, Rafael Braga, em uma abordagem na comunidade de Vila Cruzeiro, foi detido com 0,6g de maconha, 9,3g de cocaína. O jovem negou que a droga era sua e a defesa afirma que o flagrante foi forjado.
Durante o cumprimento da pena no complexo de Bangu, o ex-catador foi internado com tuberculose, em agosto de 2017. Em setembro, o ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogério Schietti Cruz, entendeu que não haviam condições para um atendimento de saúde com a reclusão.
Desde então, há nove meses, ele está em prisão domiciliar para o tratamento da doença. Rafael cumpre a pena em uma casa doada por militantes através da Campanha 30 dias por Rafael Braga, uma série de mobilizações em solidariedade que antecedeu o julgamento da liminar.
Por Rite Pina, no Brasil de Fato
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