Estes não são seres humanos, nossos irmãos e irmãs? - Portal Vermelho
O grau de civilização e de espírito humanitário de uma sociedade se mede pela forma como ela acolhe e convive com os diferentes. Sob este aspecto a Europa nos oferece um exemplo lastimável que beira à barbárie. O menino sírio de 3-4 anos afogado na praia da Turquia simboliza o naufrágio da própria Europa. Ela sempre teve dificuldades de aceitar e de conviver com os “outros”.
Por Leonardo Boff*, em seu blog
Foto: Ognen Teofilovski / Reuters Imigrantes sírios caminham nos trilhos entre a Macedônia e a Grécia. Estes não são seres humanos, nossos irmãos e irmãs?
Geralmente a estratégia era e continua sendo esta: ou marginaliza o outro, ou o submete ou o incorpora ou o destrói. Assim ocorreu no processo de expansão colonial na África, na Ásia e principalmente na América Latina. Chegou a destruir etnias inteiras como aquelas do Haiti e no México.
O limite maior da cultura europeia ocidental é sua arrogância que se revela na pretensão de ser a mais elevada do mundo, de ter a melhor forma de governo (a democracia), a melhor consciência dos direitos, a criadora da filosofia e da tecnociência e, como se isso não bastasse, ser a portadora da única religião verdadeira: o cristianismo. Resquícios desta soberba aparecem ainda no Preâmbulo da Constituição da União Europeia. Aí se afirma singelamente:
“O continente europeu é portador de civilização, que seus habitantes a habitaram desde o início da humanidade em sucessivas etapas e que no decorrer dos séculos desenvolveram valores, base para o humanismo: igualdade dos seres humanos, liberdade e o valor da razão…”
Esta visão é somente em parte verdadeira. Ela esquece as frequentes violações destes direitos, as catástrofes que criou com ideologias totalitárias, guerras devastadoras, colonialismo impiedoso e imperialismo feroz que subjugaram e inviabilizaram inteiras culturas na África e na América Latina em contraste frontal com os valores que proclama. A situação dramática do mundo atual e as levas de refugiados vindos dos países mediterrâneos se deve, em grande parte, ao tipo de globalização que ela apoia, pois configura, em termos concretos, uma espécie de ocidentalização tardia do mundo, muito mais que uma verdadeira planetização.
Este é o pano de fundo que nos permite entender as ambiguidades e as resistências da maioria dos países europeus em acolher os refugiados e imigrantes que vêm dos países do norte da África e do Oriente Médio, fugindo do terror da guerra, em grande parte, provocada pelas intervenções dos ocidentais (Otan) e especialmente pela política imperial norte-americana.
Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), somente neste ano 60 milhões de pessoas se viram forçadas a abandonar seus lares. Só o conflito sírio provocou 4 milhões de desalojados. Os países que mais acolhem estas vítimas são o Líbano com mais de um milhão de pessoas (1,1 milhão) e a Turquia (1,8 milhão).
Agora esses milhares buscam um pouco de paz na Europa. Somente neste ano cruzaram o Mediterrâneo cerca de 300 mil pessoas entre imigrantes e refugiados. E o número cresce dia a dia. A recepção é carregada de má vontade, despertando na população ideologias fascistóides e xenófobas, manifestações que revelam grande insensibilidade e até inumanidade. Foi somente depois da tragédia da ilha de Lampedusa, ao sul da Itália, quando se afogaram 700 pessoas em abril de 2014, que se colocou em marcha uma operação Mare Nostrum com a missão de rastrear possíveis naufrágios.
A acolhida é cheia de percalços, especialmente por parte da Espanha e da Inglaterra. A mais aberta e hospitaleira, apesar dos ataques que se fazem aos acampamentos dos refugiados, tem sido a Alemanha. O governo filofascista de Viktor Orbán da Hungria declarou guerra aos refugiados. Tomou uma medida de grande barbárie: mandou construir uma cerca de arame farpado de quatro metros altura ao longo de toda fronteira com a Sérvia, para impedir a chegada dos que vêm do Oriente Médio. Os governos da Eslováquia e da Polônia declararam que somente aceitariam refugiados cristãos.
Estas são medidas criminosas. Todos estes sofredores não são humanos, não são nossos irmãos e irmãs? Kant foi um dos primeiros a propor uma República Mundial (Weltrepublik) em seu último livro A paz perpétua. Dizia que a primeira virtude desta república deveria ser a hospitalidade como direito de todos e dever para todos, pois todos somos filhos da Terra.
Ora, isso está sendo negado vergonhosamente pelos membros da Comunidade Europeia. A tradição judaico-cristã sempre afirmou: quem acolhe o estrangeiro, está hospedando anonimamente Deus. Valham as palavras da física quântica que melhor escreveu sobre a inteligência espiritual – Danah Zohar: ” A verdade é que nós e os outros somos um só, que não há separatividade, que nós e o ‘estranho’ somos aspectos da única e mesma vida”(QS:consciência espiritual, Record, 2002, p. 219). Como seria diferente o trágico destino dos refugiados se estas palavras fossem vividas com paixão e compaixão.
*Leonardo Boff escreveu Hospitalidade:direito e dever de todos, Vozes, 2005.
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